O desmatamento de 11 mil hectares de cerrado, uma área equivalente a 15 mil campos de futebol, num prazo de dez anos é parte do plano apoiado pelo governo federal na Terra Indígena Sangradouro, em Poxoréu (MT), para o plantio de soja, arroz e milho a partir de acertos assinados entre lideranças indígenas xavantes e fazendeiros bolsonaristas da região.

“Sem o apoio do presidente da República [Bolsonaro] e da Funai nós não teríamos conseguido fazer o projeto. Só conseguimos em função do total apoio. A Funai em Brasília é uma extensão do nosso projeto”, disse à coluna o produtor de soja José Otaviano Ribeiro Nardes, uma das principais lideranças ruralistas da região, que é irmão do ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) e ex-deputado federal Augusto Nardes e integra o Sindicato Rural de Primavera do Leste (MT), do qual foi presidente.

José Nardes disse que a ideia do projeto partiu do próprio Jair Bolsonaro em abril de 2017. Ele afirmou ter ouvido a sugestão de Bolsonaro quando o político, ainda deputado federal, visitou a quarta edição da FarmShow, uma feira agropecuária de Primavera. Nardes disse que, a partir da posse de Bolsonaro na Presidência, em janeiro de 2019, a ideia avançou. Há registros de conversas de Nardes e dos xavantes em Brasília com o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e com o ministro Nardes no TCU.

Na terra indígena foram fincadas placas com os nomes de três produtores rurais que estão autorizados pelos indígenas a operar na terra de Sangradouro – um dos nomes nas placas é o de Nardes; os outros são Ferrari e Furlan. Eles já começaram a plantar nesta semana soja e arroz numa área de 1 mil hectares perto de aldeia Volta Grande.

Fazendeiros e indígenas assinaram ‘termos de cooperação’
No ano passado, numa área menor, foi plantado arroz. Os indígenas e produtores dizem que colheram, em 2021, cerca de 106 toneladas do cereal e que o primeiro plantio ocorreu numa área “já antropizada”, que havia sido usada em outra plantação mecanizada no passado. Os indígenas foram pagos, por essa safra, com “uma entrega de fardos de arroz [por família] para consumo nas aldeias, um veículo Palio, entre outros”, segundo um ofício encaminhado à Funai pelos indígenas que defendem o agronegócio.

Em abril último os produtores e indígenas fizeram em Sangradouro um “dia de campo”, com a presença presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier. A Funai divulgou o ato em seus endereços oficiais na internet.

As placas dizem que o projeto tem apoio da Funai, do Sindicato Rural, do Senar (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural) e da Aprosoja, uma associação de sojicultores de Mato Grosso, entre outros.

Uma ampla estrada de terra foi aberta dentro da terra indígena para a passagem dos caminhões e tratores. Foram também erguidos um galpão e uma casa de apoio. Na estrada à beira da rodovia BR-070 que dá acesso à área do plantio, a placa oficial de identificação da terra indígena foi derrubada. Ao lado, de pé, ficou a placa que anuncia o “projeto de independência indígena”.

Para viabilizar o plantio, uma série de seis contratos foi assinada em março de 2020 e em maio de 2021 entre lideranças xavantes e produtores rurais da região, todos com as mesmas cláusulas e condições. Os acertos são chamados eufemisticamente de “Termos de cooperação técnico agrícola” e os fazendeiros aparecem como “cooperadores” que teriam sido “convidados” pelos xavantes.

Os documentos dizem que cabe aos indígenas “delimitar a área para cultivo devidamente demarcada por coordenadas geográficas, com anuência da Funai e devidamente liberadas pelos órgãos ambientais”, além de “responder aos processos ambientais e políticos para garantir o uso agrícola da área”, entre outras tarefas.

De acordo com os termos de 2021, caberá aos produtores rurais, entre outros pontos, “coordenar o processo de implantação das culturas” e “promover o transporte e venda dos produtos resultantes da Cooperação Agrícola, acompanhado pelo cooperante [associação indígena], a destino previamente acordado entre as partes”.

Os termos relativos à área inicial de 1 mil hectares dizem que os fazendeiros repassarão à cooperativa indígena “20% dos lucros líquidos auferidos, descontados todos os custos da produção”.

Uma tabela de cálculo apresentada pelos fazendeiros revela que o investimento necessário para o plantio num espaço de 1,5 mil hectares dentro da terra indígena será de R$ 3,73 milhões. Uma “análise de viabilidade técnica” entregue à Funai pelo Sindicato Rural diz ainda que “o que está acertado é que cada parceiro irá fazer o investimento inicial por sua conta”, o que inclui “limpeza da área, correção do solo com calcário e fósforo, demarcação e construção de curvas de nível”, entre outras medidas. O documento diz ainda que “cada parceiro abrirá 50% da área por ano”.

Procurador da República em MT disse ‘não se opor’ ao projeto
Para o contorno legal do “termo de cooperação”, o grupo de xavantes interessado no plantio criou uma cooperativa e a registrou na Junta Comercial de Mato Grosso, a Cooingrandesan (Cooperativa Indígena Sangradouro e Volta Grande). O endereço da sede da entidade é uma fazenda, Estrela, na zona rural de Poxoréu. No pé do estatuto social da cooperativa, o nome de José Nardes aparece como “coordenador dos trabalhos”.

O presidente da cooperativa, o xavante Gerson Wa Raiwe, disse à coluna que a entidade está apenas provisoriamente nesse endereço, mas ele será trocado. Disse que o projeto não desmatou novas áreas e está usando um trecho da terra indígena “antropizada”, isto é, anteriormente já usada. Ele reconheceu, porém, que o projeto deverá crescer e ocupar outras áreas. Sangradouro tem cerca de 100 mil hectares.

“Esse projeto é todo regulamentado dentro da norma vigente e respeitando a organização da convenção internacional [do Trabalho], que é direito assegurado aos indígenas. […] Nós temos esse direito de viver com dignidade porque se a gente não fizer isso, quem vai fazer por nós? Estamos pensando em erradicar a fome, temos terra produtiva e não podemos produzir, o que está muito errado”, disse Gerson.

José Nardes afirmou à coluna que o projeto em Sangradouro será levado a várias outras terras indígenas no país.

“Esse projeto está sendo divulgado a nível de país e hoje é um modelo para o país. Então a Funai tem o maior prazer de divulgar isso e está nos ajudando cada vez mais. Hoje está acontecendo em mais de 20, 30 reservas que têm interesse em fazer o projeto. E esse é o modelo do projeto. Então a Funai está junta, é nossa grande parceira.”

Os indígenas submeteram o assunto ao MPF (Ministério Público Federal). O procurador da República em Barra do Garças (MT) Everton Pereira Aguiar Araújo deu um despacho em novembro de 2020 que deu amparo ao plantio em Sangradouro. Ele escreveu que “o Ministério Público Federal não se opõe à realização do projeto apresentado, em parcela da área inserida no espectro de abrangência de sua atribuição territorial”. Desde que “cumpridos os requisitos legais estabelecidos pela ordem jurídica”.

‘O mundo xavante está sendo destruído’, diz indígena
O projeto tem criado atritos dentro da própria comunidade xavante. A coluna ouviu dois indígenas contrários ao projeto. Seus nomes não serão publicados porque ambos narraram um ambiente de tensão e até de ameaças físicas contra os críticos da produção mecanizada em larga escala de soja e arroz, que implicará em mais desmatamento.

“Essa plantação já está destruindo o cerrado, entendeu? O mundo xavante já está sendo destruído. Eles falam que está legalizado… Esse projeto já começou de um jeito muito complicado, sem consulta prévia, livre e informada. Esse governo Bolsonaro, está claro para todos nós, está criando uma plataforma muito mais complicada do que parece. Ele dividiu a gente”, disse uma das lideranças.

“O cerrado representa para mim uma espécie de espiritualidade. A gente respira através do cerrado, a gente cresce no cerrado, a gente caça no cerrado, a gente alimenta o povo xavante dentro do cerrado, a nossa riqueza está dentro do cerrado. Estão nos prejudicando, é uma ameaça para nós”, disse outro indígena em Sangradouro.

Em maio passado, a Associação Xavante Warã emitiu uma nota pública para “repudiar o uso político que o governo federal está fazendo do povo Auwé Xavante, como laboratório de sua ‘anti-política indigenista’, implantando cooperativas agrícolas que funcionam em parceria com o agronegócio, dentro da Terra Indígena de Sangradouro/MT”.

“Ao contrário do que seu nome pretende transparecer, o projeto nada tem de independência ou autonomia para o povo A’Uwe Xavante. Na verdade, o projeto é mais um estímulo à dependência e ao arrendamento, com ares de legalidade. Sabemos que a finalidade última desse projeto – que é político – é de se apropriar do nosso território, sob falsa e hipócrita justificativa de desenvolvimento econômico das nossas comunidades”, diz a carta.

Em reação a essa carta, um grupo de indígenas favoráveis ao agronegócio aparece num vídeo que circulou nas redes sociais rasgando a carta divulgada pela associação.

O presidente da cooperativa ligada ao agronegócio, Gerson Wa Raiwe, disse que “apenas uma aldeia”, com cerca de 80 indígenas, está contra o projeto. Ele afirmou que há 3,2 mil indígenas em Sangradouro e a cooperativa “fez uma consulta entre os participantes nesse projeto, 58 aldeias”.

Procurador da Funai diz que órgão não precisa mediar as parcerias
Além de entrevistas do presidente Marcelo Xavier, textos e imagens divulgados pela Funai em seu site na internet, a parceria com os fazendeiros em Sangradouro também recebeu o apoio do setor que representa juridicamente o órgão indigenista.Em despacho assinado em setembro de 2020 e direcionado à presidência da Funai, o procurador-chefe nacional do órgão, o advogado da União Álvaro Osório do Valle Simeão, aprovou um parecer que, segundo ele, concluiu “no sentido da possibilidade de estabelecimento de parcerias rurais ‘sui generis’ para produção agropecuária em terras indígenas, o que alguns chamam de contratos de ‘cooperação agrícola’, mas desde que sejam feitos ajustes no caso concreto que se se submeteu a análise”.

Em seu parecer, Simeão disse que “não é possível o estabelecimento de uma remuneração fixa a indígenas por área colhida. Esse tipo de cláusula é típica de ‘arrendamento rural’, não permitido pela Constituição Federal, Estatuto do Índio e jurisprudência do STF na PET 3388 [caso Raposa/Serra do Sol] para agricultura em área indígena”.

Em outro parecer, de dezembro de 2020, Simeão afirmou que “não há inconstitucionalidade” na subscrição dos “termos de parceria agrícola” pela cooperativa indígena porque “não se verifica alienação de usufruto de bem da União”.

O procurador orientou ainda que “eventual mediação” entre produtores e indígenas “seja conduzida por meio de arbitragem, em que um árbitro escolhido pelas partes poderá conduzir eventual acordo de forma profissional”.

“Não nos parece caso de mediação pelo MPF ou Funai, que cuidam de interesses abstratos indígenas. Saliente-se, também, que a Funai não faz a tutela orfanológica de indígenas, de modo que a cooperativa é plenamente responsável pelas obrigações contratuais que venha a assumir”, escreveu Álvaro Simeão.

Simeão também escreveu que, “como o contrato de cooperação já é manifestação válida de vontade da comunidade indígena, mostra-se dispensável uma etapa prévia de consulta comunitária, como fixado no artigo 6º da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho)”. A Convenção prevê a necessidade de estabelecer, pelo governo, uma consulta livre, prévia e informada aos indígenas sobre projetos que impactem sua vida.

Como a terra é “um bem da União”, disse o procurador, “é preciso ficar claro, contratualmente, a impossibilidade de que ela venha a garantir os custos de produção. Assim, garantias para crédito agrícola teriam que ser firmadas, por quaisquer partes da avença, com base em mecanismos alternativos de precaução contatual [sic]”.

Funai diz que contribuiu na ‘modelagem contratual’
Procurado pela coluna, o procurador da República Everton Araújo preferiu não falar sobre o assunto. Por meio da assessoria do MPF em Cuiabá, informou que “não concederá a entrevista pois os esclarecimentos já foram apresentados no documento de promoção de arquivamento”. Foi solicitada a íntegra da “promoção de arquivamento”, mas o órgão respondeu que “não estamos autorizados a repassar documentos ou informações referentes a essa demanda”.

A Funai de Brasília, procurada, informou à coluna que “contribuiu, a partir de demanda oficializada pelas lideranças Xavante ainda em 2019, realizando a modelagem contratual técnica e jurídica, consultados necessariamente a Procuradoria Federal Especializada/Advocacia-Geral da União (PFE/AGU), e o Ministério Público Federal (MPF), para que os cooperantes pudessem operar o modelo”.

A decisão sobre a escolha dos nomes dos produtores rurais, disse o órgão, “é privativa das comunidades indígenas”. Indagada sobre não ter ocorrido a consulta prévia, livre e informada prevista na Convenção 169 da OIT, a Funai disse que “o projeto conta com apoio da maioria da população Xavante da Terra Indígena”.

“O direito de consulta previsto no art. 6º da Convenção 169 da OIT diz respeito a ‘medidas administrativas ou legislativas’. No caso de Sangradouro, trata-se uma iniciativa entre dois sujeitos de direito privado (cooperantes e cooperados), o que se enquadra no art. 7º da Convenção, que destaca ‘o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento’. O projeto em questão é uma escolha da comunidade indígena que deve ser respeitada.”

A Funai disse que não assinou os contratos porque “as organizações indígenas são organizações de direito privado e, neste caso, trata-se de um contrato entre dois entes privados. Assim, como qualquer contrato de compra e venda de produção indígena, seja extrativismo, agricultura ou outra cadeia produtiva, a Funai não ‘coassina’ nenhum contrato dessa natureza. O Estado não deve intervir nesses contratos, cabendo à Funai meramente registrá-los, conforme foi feito”.

O órgão indigenista argumentou ainda que, “para a safra 2020/2021, utilizou-se uma área já aberta na qual já havia ocorrido plantio mecanizado no passado sem necessidade de abertura de novas áreas. A safra 2020/2021 restringiu-se, meramente, a uma área de 50 hectares”.

Indagada sobre se concorda com o desmatamento de 11 mil hectares de cerrado previsto no plano, a Funai disse que, “conforme o art 7º da Convenção 169 da OIT, os povos indígenas têm ‘o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento’. Do ponto de vista ambiental, a Funai entende que a autorização ou não de abertura de novas áreas para plantio deverá seguir todos os trâmites relacionados ao licenciamento ambiental”.

Procurado, o Palácio do Planalto não havia se manifestado até o fechamento do texto.

Fonte: Rubens Valente, UOL

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