Startup do CEO da OpenAI reacende debate sobre a comercialização de dados biométricos de usuários para treinamento de IA.
Nos últimos anos, a Inteligência Artificial tem se tornado uma das tecnologias mais revolucionárias do mercado, gerando transformações em diversos setores. No entanto, a necessidade de grandes volumes de dados para o treinamento dessas IAs levanta questões sobre a ética e a viabilidade de modelos de remuneração por dados.
Um dos exemplos mais controversos dessa tendência foi a iniciativa do fundador da OpenAI, Sam Altman, que lançou um serviço no Brasil pagando consumidores dispostos a venderem o escaneamento de suas retinas para um projeto de IA ainda em desenvolvimento.
A proposta foi barrada pela Justiça, mas Altman reiterou que, no futuro, usuários poderão ser remunerados pela venda de seus dados. Além disso, a Microsoft tem oferecido US$ 5 mil para autores que permitirem o uso de seus livros para treinamento de IA.
Mas essa prática pode realmente se tornar um bom modelo de negócio? Quais são os desafios e implicações éticas e legais desse movimento?
A viabilidade da remuneração por dados
De acordo com Hitty-Ko Kamimura, especialista em biotecnologia que auxilia no treinamento de IAs privadas, a remuneração por dados biométricos, como a proposta de Sam Altman, traz desafios significativos tanto do ponto de vista econômico quanto da segurança e privacidade dos usuários.
Atualmente, grandes empresas como Google, Meta e Amazon já lucram amplamente com os dados dos usuários, incluindo comportamento on-line e preferências de compra, sem precisar recorrer a informações biométricas.
“Grandes corporações já extraem imenso valor de dados comportamentais, e um ‘novo’ mercado baseado na biometria pode não agregar tanto valor assim”, explica.
Ele destaca ainda que, apesar de a biometria ser altamente sensível e segura em alguns contextos, vender esse tipo de informação levanta sérias preocupações sobre desigualdade de benefícios, privacidade, riscos de vazamentos e implicações éticas.
“As empresas podem lucrar significativamente com esses dados, enquanto os usuários receberiam uma compensação desproporcionalmente baixa. Além disso, um dado biométrico vazado não pode ser ‘trocado’ como um cartão de crédito cancelado. Isso gera um risco permanente para os indivíduos”, alerta.
Impacto no mercado de IA
A ideia de remunerar indivíduos ou empresas pelos dados fornecidos poderia criar novas oportunidades de negócios, mas Hitty-Ko Kamimura destaca que essa mudança pode não ser tão expressiva no curto prazo.
Muitas empresas já possuem grandes bases de dados para treinamento de IA, muitas vezes obtidos de forma questionável. E o crescente volume de dados sintéticos gerados por IA pode diminuir a demanda por dados reais, impactando a viabilidade do modelo de remuneração.
“Na prática, já oferecemos dados às grandes empresas sem receber nada em troca, seja por meio de interações em redes sociais ou padrões de consumo. Um sistema de remuneração bem estruturado poderia trazer mais justiça a essa relação, mas há desafios claros na sua implementação”, explica.
Hitty-Ko Kamimura acredita que, se regulamentada e fiscalizada corretamente, essa tendência poderia democratizar o acesso à tecnologia, permitindo que pequenos players e indivíduos também se beneficiem economicamente da venda de seus dados.
Todavia, ele alerta que a maior vantagem ainda estaria nas mãos das grandes empresas, que têm infraestrutura e conhecimento para extrair mais valor das informações.
Microsoft e a remuneração de autores
A Microsoft recentemente propôs pagar US$ 5 mil para autores que permitirem que seus livros sejam usados no treinamento de IA. Essa iniciativa reacendeu o debate sobre a remuneração por dados e conteúdos autorais.
Para Hitty-Ko Kamimura, esse modelo pode ser uma forma inicial de compensação justa, mas ainda enfrenta desafios regulatórios e éticos.
“Se autores forem pagos de forma recorrente, como royalties proporcionais ao uso de seus textos em modelos de IA, essa abordagem pode ser mais sustentável. Contudo, é essencial garantir contratos claros e fiscalização para que o uso não ultrapasse os limites acordados”, destaca.
Ele também alerta para o risco de que apenas um pequeno grupo de autores seja beneficiado, enquanto uma grande quantidade de dados seja utilizada sem compensação justa.
“Esse modelo pode ser positivo, mas precisa de regras bem definidas para evitar exploração”, complementa.
Desafios regulatórios e segurança dos dados
Para que a remuneração por dados se torne um modelo viável e seguro, governos e empresas terão que enfrentar desafios regulatórios complexos. Hitty-Ko Kamimura elenca os principais obstáculos:
- Mecanismos de fiscalização constante: é necessário garantir que os dados sejam coletados, armazenados e utilizados de forma ética e segura;
- Consentimento informado e privacidade: usuários precisam ter plena consciência de como seus dados serão usados e quais são os riscos envolvidos;
- Precificação e transparência: o valor pago deve ser justo em relação ao benefício que a empresa obtém com os dados;
- Padronização do que pode ser coletado: definir quais tipos de dados podem ser vendidos e em quais condições;
- Segurança e minimização de riscos: implementar medidas robustas para evitar vazamentos e uso indevido das informações.
Mercado de trabalho e relações de consumo
Se a remuneração por dados se tornar uma prática comum, poderá haver impactos no mercado de trabalho e na relação entre consumidores e empresas.
Hitty-Ko Kamimura aponta que essa mudança poderia criar novas funções, como curadores de dados e consultores de governança de informação.
“No entanto, é provável que as grandes empresas continuem sendo as principais beneficiárias, enquanto os consumidores receberão apenas uma fração do valor gerado. Esse desequilíbrio na distribuição de lucros precisa ser endereçado para que o modelo seja realmente justo”, pondera.
Além disso, a monetização de dados pode estimular a criação de conteúdos voltados exclusivamente para gerar receita, potencialmente reduzindo a qualidade das informações disponíveis.
Um modelo sustentável e benéfico
Para que esse modelo de remuneração seja justo e sustentável, Hitty-Ko Kamimura sugere algumas diretrizes:
- Remuneração recorrente: criar um sistema de royalties para dados usados de forma contínua;
- Transparência e contratos claros: empresas e fornecedores de dados devem estabelecer acordos detalhados sobre uso e compensação;
- Controle de qualidade: investir em curadoria para garantir que os dados sejam confiáveis e úteis;
- Governança e fiscalização: criar legislações específicas e auditorias independentes para evitar abusos.
O futuro da remuneração por dados
Ainda que a remuneração por dados seja uma tendência crescente, seu sucesso dependerá de regulamentações efetivas, equilíbrio na distribuição de lucros e conscientização dos usuários sobre o valor de suas informações.
“Não é preciso muito para criar um fluxo de dados justo, que beneficie tanto o usuário quanto a empresa – basta ter a vontade de fazer diferente. O problema é: por que ainda não fizeram?”, finaliza.
Enquanto o mercado se adapta a essa nova realidade, a discussão sobre a ética e a transparência na comercialização de dados continuará sendo um dos grandes desafios da era da Inteligência Artificial.
Por: Amanda Medeiros