Com modelos mais acessíveis e tecnologia otimizada, a startup chinesa criadora do DeepSeek promete rivalizar com gigantes como OpenAI e Google.

O mercado global de Inteligência Artificial acaba de ganhar um novo competidor: a DeepSeek, uma empresa chinesa que lançou recentemente os modelos DeepSeek-V3 e DeepSeek-R1. Com um desempenho competitivo e custos de treinamento até 20 vezes menores que os de grandes players como OpenAI e Google, a tecnologia levanta debates sobre seu potencial impacto na indústria.

Mas será que esses novos modelos representam uma verdadeira revolução ou apenas um avanço dentro da tendência já existente de otimização e barateamento da IA?

DeepSeek: origem e avanços tecnológicos

A DeepSeek nasceu dentro da High-Flyer, um hedge fund chinês, como um laboratório de pesquisa em IA, tornando-se independente em 2023. Seu grande destaque veio com o lançamento do DeepSeek-V3, modelo open source que utiliza técnicas inovadoras para reduzir os custos operacionais.

Entre os principais avanços técnicos da DeepSeek estão o Multi-Token Prediction (MTP), que permite prever várias palavras simultaneamente, otimizando o uso de recursos computacionais, e o FP8 Mixed Precision Training, que utiliza pontos flutuantes de 8 bits para reduzir consumo de memória e custos operacionais. Além disso, os modelos foram ajustados para rodar em chips chineses menos potentes, driblando restrições comerciais impostas pelos Estados Unidos, que impedem a exportação dos chips mais avançados da NVIDIA para a China.

Outro diferencial é o Chain of Thought (CoT), técnica que instrui o modelo a exibir seu raciocínio passo a passo antes de chegar a uma resposta final. Embora essa abordagem já seja amplamente conhecida, a DeepSeek é uma das primeiras a aplicá-la de maneira detalhada em modelos de larga escala.

Desempenho competitivo, mas com desafios

Testes realizados por pesquisadores e benchmarks de referência colocam o DeepSeek-R1 em 4º lugar no ranking geral da Chatbot Arena, plataforma que avalia a qualidade dos grandes modelos de linguagem (LLMs). No segmento open source, ele lidera o ranking.

Entretanto, nem tudo são vantagens. Em benchmarks que exigem criatividade e capacidade de adaptação a contextos mais complexos, como o AidanBench, os modelos DeepSeek demonstraram limitações. Eles tendem a gerar respostas repetitivas e apresentam dificuldades para oferecer soluções inovadoras. Isso pode comprometer sua aplicabilidade em chatbots avançados, assistentes virtuais e outros sistemas que exigem maior flexibilidade nas respostas.

Além disso, a performance da DeepSeek em segurança ainda é questionável. Testes apontaram vulnerabilidades que podem ser preocupantes para setores que lidam com dados sensíveis, como saúde e finanças.

A ameaça às big techs é real?

Com custos reduzidos e uma abordagem mais acessível, a DeepSeek levanta dúvidas sobre a necessidade dos chips mais avançados da NVIDIA e pode incentivar uma reavaliação nos investimentos em IA. No entanto, a análise da Aster Capital indica que, apesar do desempenho promissor, a DeepSeek não representa uma ameaça imediata às grandes empresas do setor. Isso porque, embora mais barata, sua tecnologia ainda não supera modelos como o GPT-4 da OpenAI em tarefas complexas e de alto valor agregado.

O mercado de IA está em um processo acelerado de queda de custos, e a DeepSeek parece ser mais um reflexo desse movimento do que um agente transformador. A expectativa é que o futuro da IA esteja na criação de agentes cada vez mais sofisticados (Agentic AI), capazes de realizar tarefas complexas e de longo prazo, o que ainda exige modelos mais robustos.

O lançamento da DeepSeek-V3 e R1 marca um avanço significativo no cenário da IA, especialmente no campo dos modelos open source. Sua abordagem eficiente e econômica pode ser um divisor de águas para empresas que buscam soluções mais acessíveis, especialmente para aplicações operacionais simples, como revisões de código e cálculos matemáticos.

No entanto, ainda há barreiras técnicas e estratégicas a serem superadas. A DeepSeek pode ser uma opção viável para determinados nichos, mas ainda não tem a robustez necessária para redefinir o mercado global de Inteligência Artificial. A revolução, ao menos por enquanto, segue sendo liderada pelas big techs.

A IA chinesa pode redefinir o mercado global?

A indústria de Inteligência Artificial está diante de uma potencial revolução com o surgimento do DeepSeek. A plataforma chinesa promete rivalizar com modelos avançados, como o GPT-4 da OpenAI, a um custo significativamente menor. Segundo Airan Junior, especialista em IA e CEO da AI.RAN, a tecnologia desenvolvida na China pode forçar as big techs a reverem seus modelos de negócio.

“O DeepSeek destacou-se ao lançar um modelo de IA que pode rivalizar com o GPT-4 da OpenAI, porém com um custo drasticamente menor. Seu diferencial mais marcante está no fato de conseguir treinar modelos gastando apenas uma fração do que as grandes empresas cobram pelo uso de suas APIs. A startup chinesa adotou abordagens inovadoras para maximizar a eficiência da IA sem depender de hardware extremamente poderoso”, destaca.

Entre as estratégias, ele cita a inferência eficiente, que reduz o consumo de processamento, tornando a execução mais leve. Existe ainda a destilação de modelos, uma técnica que permite que modelos menores aprendam com versões mais robustas sem perder desempenho. Já o Deep Think é um recurso inovador que torna o raciocínio da IA mais transparente, permitindo visualizar como as informações são processadas antes da resposta ser gerada, algo que poucas plataformas oferecem.

“Outras tecnologias avançadas presentes no DeepSeek incluem o aprendizado por reforço, que melhora a capacidade de adaptação do modelo, a arquitetura Mixture-of-Experts (MoE), que otimiza o uso de parâmetros para diferentes tarefas, e o Multi-Head Latent Attention (MLA), que aprimora a identificação de padrões complexos”, comenta. “Além disso, o DeepSeek aposta em um modelo parcialmente aberto (open-weight), permitindo que pesquisadores acessem seus algoritmos e contribuam com seu desenvolvimento. Diferente de muitas empresas, a startup não exige assinatura para uso do chatbot, bastando apenas a criação de uma conta”.

A gratuidade pode impactar o mercado?

Diferente de plataformas como OpenAI e Anthropic, que operam majoritariamente por meio de assinaturas e cobrança pelo uso da API, o DeepSeek oferece acesso gratuito ao seu chatbot. Segundo Airan, essa estratégia pode causar um grande impacto no setor.

“Se a startup conseguir manter essa vantagem competitiva e operar de forma sustentável, poderá forçar os grandes players do setor a revisarem seus preços, remodelar suas estratégias de monetização reduzindo preços e até reformulando a forma como oferecem seus serviços”, avalia.

Disputa tecnológica entre China e EUA

Diferente de empresas ocidentais, que fragmentam o aprendizado da rede neural, a DeepSeek aposta em um método mais adaptável, baseado em tentativa e erro. Outro fator crítico é que, devido às sanções dos EUA, a China não tem acesso aos chips mais avançados da NVIDIA, obrigando a DeepSeek a desenvolver modelos altamente otimizados para rodar com hardware mais limitado. Isso demonstra um domínio técnico na eficiência computacional que pode ser um grande diferencial no futuro.

“A entrada de novas plataformas como o DeepSeek intensifica a disputa geopolítica e tecnológica entre China e EUA, além de impulsionar uma guerra de preços que pode tornar a IA mais acessível. Esse cenário pode acelerar a inovação, mas também levanta desafios regulatórios e de segurança de dados, já que diferentes países possuem abordagens distintas quanto à transparência e privacidade”, reforça Airan.

O especialista destaca ainda que, embora empresas como OpenAI, Google e Anthropic ainda dominem o mercado, novos concorrentes estão surgindo com modelos mais acessíveis. As gigantes da tecnologia ainda possuem um enorme poder de consolidação devido ao controle de infraestrutura e dados, mas o crescimento de players chineses indica que o setor pode evoluir para uma disputa mais equilibrada entre blocos econômicos, em vez de uma hegemonia ocidental absoluta.

O futuro da IA: diversificação ou consolidação?

Essa presença crescente de IAs desenvolvidas fora do eixo acidental pode ainda mudar a dinâmica desse mercado. Airan relembra que a competição pela liderança em Inteligência Artificial vai além da inovação tecnológica – trata-se de uma disputa por influência global. Os Estados Unidos, historicamente à frente nesse setor, agora enfrentam uma concorrência significativa da China. Enquanto os norte-americanos apostam em investimentos privados, lidando com desafios regulatórios, os chineses adotam uma estratégia de longo prazo, sustentada por maciços aportes governamentais e um amplo acesso a dados.

“O governo chinês adota medidas agressivas para acelerar a inovação, como enviar estudantes para as melhores universidades do mundo (inclusive universidades americanas) e trazê-los de volta para liderar o setor de tecnologia e muito, mais muito investimento. Esse avanço pode remodelar políticas comerciais, sanções e até mesmo a balança de poder econômico global”, explica.

Já dentro do âmbito da privacidade e proteção de dados, o especialista pontua que, enquanto a União Europeia prioriza a privacidade e a transparência, a China adota um modelo de vigilância estatal muito mais rigoroso. Caso o DeepSeek siga diretrizes governamentais chinesas, podem surgir preocupações sobre a coleta e o uso de dados, especialmente entre usuários de outros países. No entanto, como a regulamentação da IA ainda está em desenvolvimento em nível global, a posição oficial da startup nesse quesito permanece indefinida.

“O avanço da IA está acontecendo em um ritmo impressionante. Modelos mais eficientes e acessíveis, como o DeepSeek, estão desafiando a supremacia das Big Techs e mostrando que inovação não depende apenas de dinheiro, mas também de otimização de recursos. Além disso, a demanda por maior transparência no funcionamento da IA deve crescer, impulsionando a criação de arquiteturas mais interpretáveis. Com a crescente disputa entre blocos econômicos, países tendem a investir cada vez mais em soluções próprias, descentralizando ainda mais o setor”, conclui.

Regulação, disputa global e desafios

Diante da polarização em torno dos debates da regulação global da Inteligência Artificial, o advogado especialista em big-techs Lucas Euzébio pontua ser importante ter um framework mínimo de governança para conseguir utilizar a IA de forma responsável.

“Vários países já vêm buscando se regularizar e trazendo discussões sobre o tema. A Europa sempre esteve na vanguarda, abordando essa questão de maneira pioneira quando falamos de regulação. Ainda assim, do meu ponto de vista, a regulação europeia se caracteriza pela regulação extraterritorial. Segundo os europeus, essa regulação deve se aplicar ao cidadão europeu independentemente do local onde ele esteja acessando a tecnologia”, comenta.

Ao mesmo tempo, as empresas de tecnologia ameaçam ou se veem forçadas a se adaptar à regulação europeia, pois os europeus têm o costume e a cultura de uma regulação mais rígida, especialmente no que se refere à proteção de dados e à Inteligência Artificial.

“Aqui no Brasil, temos o Projeto de Lei 2338/2023, aprovado pelo Senado, que trata do marco legal da IA. Esse projeto segue um modelo semelhante ao da União Europeia. Assim, percebo que o mundo caminha, aos poucos, para frameworks regulatórios parecidos. O que dificulta o consenso global é a polarização entre o Ocidente, especialmente os Estados Unidos, e o Oriente, representado pela China”, explica. “Vejo uma predisposição global para um framework mais padronizado, mas esses dois grandes players têm dificuldades em chegar a um consenso sobre como regular a IA. Isso torna o debate ainda mais complexo”, completa.

Dentro desse cenário jurídico, existem desafios que uma IA gratuita, como o DeepSeek, pode enfrentar ao operar em mercados altamente regulados, como o europeu e o americano. A política de privacidade do DeepSeek menciona que os dados podem ser compartilhados dentro do seu grupo corporativo, mas não especifica com quem, para qual finalidade ou por quanto tempo. O usuário não dá um consentimento explícito sobre isso.

“Entretanto, se analisarmos a política de privacidade da OpenAI, encontramos a mesma previsão: o compartilhamento de dados com seu grupo econômico. Então, não existe um único vilão. O que diferencia a DeepSeek é que sua política de privacidade menciona a coleta do que eles chamam de ‘gestalt dynamics‘, que se refere ao comportamento do usuário enquanto ele está teclando e utilizando a ferramenta”, explica.

Lucas reforça ainda que, pela LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), muitos podem argumentar que esses são dados anonimizados, ou seja, que não identificam diretamente o indivíduo. No entanto, o projeto de lei do marco legal da IA no Brasil, que se assemelha ao da Europa, classifica o tratamento de dados conforme seu nível de risco: baixo, médio ou alto. Se o DeepSeek faz a captura do comportamento do usuário para fins de monitoramento social ou análise de personalidade, isso pode ser classificado como IA de alto risco, exigindo auditorias e maior comprovação de necessidade na coleta desses dados.

Medo e euforia

Dentro desse cenário, os reguladores globais estão reagindo com um misto de medo e euforia. O  DeepSeek é vista como uma IA altamente avançada e acessível, o que abalou o mercado, provocando quedas significativas em ações de empresas concorrentes. Isso pode levar à mobilização de grandes players para tentar impedir ou dificultar sua atuação, sob o argumento de falta de transparência e governança.

“O Departamento de Estado dos EUA proibiu o uso da DeepSeek em sua instituição, demonstrando o receio de que essa tecnologia possa representar riscos à segurança e à privacidade. Esse tipo de movimento pode indicar uma tendência de restrição ou bloqueio em algumas regiões”, reforça.

Ao mesmo tempo, Lucas acredita que essa nova IA pode redesenhar o equilíbrio de poder da tecnologia no mercado global. Para o advogado, se olharmos para o mercado asiático, veremos que ele é realmente enorme e tem um grande potencial. Além disso, todas essas novidades passam um recado importante: a China está enviando uma mensagem para outros países emergentes, como o Brasil e a Índia, de que é preciso se posicionar e investir massivamente em pesquisa, desenvolvimento, tecnologia e setores de inovação dentro do próprio país. Caso contrário, ficaremos como árbitros de outras nações.

“Naturalmente, os países mais próximos da Ásia têm um mercado enorme, o que favorece a consolidação da China como um grande player em Inteligência Artificial. Uma grande lição para os países emergentes é que não podemos simplesmente ficar sentados no banco de reservas, apenas utilizando as tecnologias das grandes potências. O mundo está caminhando para políticas mais restritivas e governos mais autoritários, tornando o isolacionismo uma tendência política cada vez mais evidente”, finaliza.

*Foto: Chitaika / Shutterstock.com