quarta-feira,11 dezembro, 2024

Antes gratuito, armazenamento de dados na nuvem vira dor de cabeça para universidades

Google e Microsoft começam a cobrar acadêmicos para guardar mais gigabytes de arquivos e geram debate sobre dependência tecnológica em instituições públicas

Mudanças nas políticas de armazenamento de gigantes do setor de tecnologia vêm causando problemas para universidades públicas brasileiras, seus alunos e professores. Anunciados em 2021 pelo Google e em fevereiro deste ano pela Microsoft, os planos gratuitos de espaço quase ilimitado para membros da comunidade acadêmica foram reformulados, o que tem gerado custos às instituições e até a pessoas físicas, além de gerar um intenso debate sobre dependência digital.

O serviço das big techs costuma ser utilizado para arquivar artigos acadêmicos, dados científicos, documentos e certificados, além de conteúdos pessoais.

“Quando Google e Microsoft começaram a criar as regras de restrição, tornaram as universidades meio reféns delas. Quem tinha recurso e precisava do serviço em maior escala acabou contratando-o para manter as contas. Quem não tinha se adequou às regras das empresas. As poucas instituições que não fazem uso de nenhuma delas mantêm serviço próprio. Ou seja, a maioria está pagando ou teve que reduzir a oferta de espaço para toda comunidade”, disse Lidiane da Silva, gestora da Unifesp e coordenadora do Colégio de Gestores de TI das universidades, um grupo vinculado à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).

Uma situação traumática ocorreu no fim do mês passado na Universidade Federal de Juiz Fora (UFJF), onde 14 mil contas de e-mail foram apagadas com os dados armazenados, para desespero da comunidade acadêmica.

A universidade explica que essas contas foram criadas a partir de 2007 por “iniciativa particular de algumas pessoas vinculadas” à Faculdade de Engenharia e não eram administradas pela reitoria. Em agosto, o Google notificou extrajudicialmente a instituição alegando uso indevido de parte dessas contas “para armazenamento de conteúdos não acadêmicos, como séries, conteúdo adulto e materiais protegidos por direitos autorais”.

No mesmo mês, a UFJF informou aos alunos que até 30 de novembro as contas seriam encerradas, o que impediria o envio de e-mails, e recomendou “que as ações de migração” fossem “iniciadas imediatamente”. Três dias antes do prazo, o Google derrubou todos os e-mails e tudo o que estava armazenado neles. Além do suposto material irregular, também foram apagados artigos, dados científicos, fotos de família e uma diversidade de materiais que agora é irrecuperável.

Com isso, a tensão escalou na instituição. A administração central conta que a reitora, Girlene Alves da Silva, e pró-reitores chegaram a receber ameaças “que colocam em risco sua integridade física e moral” de quem se sentiu prejudicado. Segundo a nota, “essas ações, além de serem infundadas, são inaceitáveis e estão sendo tratadas com a seriedade que o caso exige” e “por meio da Procuradoria Federal junto à UFJF, medidas legais estão sendo tomadas para a devida apuração e responsabilização dos envolvidos”. Já alunos que perderam os arquivos dizem que não tiveram amparo da universidade.

Parte da pesquisa mais inovadora que eu tinha, pelas palavras do Google e da UFJF, não vou mais reaver. Eu não consigo mais pontuar em uma prova de títulos porque não tenho mais meus certificados e documentos que atestam minhas formações. Sinto que isso fechou as portas para terminar meu doutorado; sinto que todo o meu esforço, até aqui, não valeu nada, já que uma instituição pública e uma empresa privada arbitrariamente resolveram apagar a minha memória — diz Paulo Amorim, que perdeu a tese escrita que defenderia em fevereiro e todos os seus dados de pesquisa.

Discussões

Entre 2007 e 2021, o Google ofereceu armazenamento ilimitado para as universidades, seus docentes e seus estudantes. Há três anos, no entanto, decidiu limitá-lo a 100 terabytes — o que é muito para um indivíduo, mas pouco para uma instituição inteira. Essa política da empresa, no entanto, tem demorado a chegar na ponta em alguns casos. Só em maio deste ano, por exemplo, a Universidade de São Paulo (USP) informou que o limite de armazenamento das contas da instituição passaria a ser de 100 gigabites e que as contas de docentes que permanecessem acima desse limite teriam os arquivos removidos.

Em artigo de novembro de 2021, Ewout ter Haar, professor do Instituto de Física da USP, defendeu que instituições como as maiores universidades do país “não podem deixar atrofiar sua capacidade técnica e organizacional de manter sua própria infraestrutura sobre a qual docentes vão desenhar suas experiências educacionais”. Ele ainda afirmou que “o uso de plataformas de terceiros deve ser analisado estrategicamente e com uma visão técnico-política de longo prazo”.

“Já faz cinco anos que todos os e-mails direcionados a ou vindos de um @usp.br passam pelos servidores da Google, e docentes e alunos dependem cada vez mais dos serviços do Google para armazenamento ou comunicação. Na Europa, uma análise de impacto de privacidade a pedido do governo holandês chegou à conclusão de que devido à falta de transparência e limitação de finalidade do processamento dos dados, os produtos do Google oferecem grandes riscos de ferir a legislação de proteção de dados”, escreveu o docente, em artigo para a revista da associação de docentes da USP.

No primeiro semestre deste ano, a Microsoft tomou uma decisão parecida com a da Google em 2021. A empresa reduziu a disponibilidade gratuita de 1 terabyte por conta de professor para 100 gigas, uma diminuição de 90%. Com isso, alguns professores de instituições como a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) tiveram que pagar para manter o acesso ao armazenamento do próprio bolso. Uma conta desse tipo custa cerca de R$ 350 anuais.

Procurado, o Google não quis se posicionar. Já a Microsoft diz que, com o tempo, “os arquivos armazenados, os dados e as contas não utilizadas aumentaram consideravelmente ao longo do tempo”, o que não é sustentável.

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