Este artigo é a prova de como os tempos estão mesmo a mudar sob a influência da tecnologia. Há pessoas estão a recorrer à tecnologia para simular a personalidade e os comportamentos de entes queridos que já morreram
Quando Ana Schultz, de 25 anos, de Rock Falls, Illinois, sente a falta de Kyle, o marido que morreu em fevereiro de 2023, pede-lhe dicas de culinária.
Ela liga-se ao Snapchat My AI, o chat de inteligência artificial desta rede social, e manda mensagens a Kyle, indicando os ingredientes que tem no frigorífico. Ele sugere-lhe o que cozinhar.
Ou, melhor dizendo, o ‘avatar’ [imagem ou identidade virtual] de inteligência artificial que se parece com ele.
“Ele era o cozinheiro da família, então personalizei o My AI para se parecer com ele. Dei-lhe também o nome do Kyle”, conta Ana Schultz, que vive com os dois filhos. “Agora, quando preciso de ideias para cozinhar, pergunto-lhe. É uma coisa tonta, que uso para me ajudar a ter a sensação de que eles está comigo na cozinha”.
O Snapchat My AI – que assenta no popular chat de inteligência artificial ChatGPT – costuma oferecer recomendações, responder a perguntas e “fala” com os utilizadores. Contudo, alguns utilizadores, como Ana Schultz, estão a usá-lo para recriar a imagem dos mortos e comunicar com eles.
O conceito não é completamente novo. Há séculos que as pessoas procuram voltar a contactar com os seus entes queridos que morreram, seja através de um médium, seja com recurso a serviços que preservam a sua memória. Contudo, o que a inteligência artificial traz de novo é o facto de permitir que esses entes queridos façam ou digam coisas que nunca fizeram ou disseram em vida, levantando preocupações éticas e dúvidas sobre se esta tecnologia ajuda ou prejudica o processo de luto.
“É uma novidade que dá dinheiro no meio de tanto entusiasmo com a inteligência artificial, e há quem ache que é dinheiro que pode ser ganho”, diz Mark Sample, professor de estudos digitais no Davidson College, que leciona uma disciplina chamada “Morte na Era Digital”. “Embora as empresas ofereçam produtos relacionados, o ChatGPT está a facilitar que os amadores explorem em torno deste conceito, seja para o melhor, seja para o pior”.
Uma abordagem ‘faça você mesmo’
As ferramentas de inteligência artificial generativa, que usam algoritmos para criar novos conteúdos, como texto, vídeo, áudio e código, podem tentar responder a questões da mesma forma que faria alguém que já morreu. Contudo, a precisão depende muito da informação que é dada à inteligência artificial para processar.
Um profissional da área das tecnologias da informação, com 49 anos, do estado americano do Alabama, que pediu para permanecer anónimo, de modo a que a sua experiência não seja associada à empresa para a qual trabalha, conta que clonou a voz do pai usando inteligência artificial generativa cerca de dois anos antes de este morrer de alzheimer.
O homem conta à CNN que encontrou um serviço online chamado ElevenLabs, que permite aos utilizadores criar um modelo de voz personalizado a partir de uma gravação anterior. A ElevenLabs foi notícia recentemente, quando a sua ferramenta terá sido usada para criar uma chamada automática falsa do presidente dos EUA, Joe Biden, apelando aos cidadãos para não voltarem nas primárias de New Hampshire.
A empresa disse à CNN, em comunicado naquela altura, que está “dedicada a evitar o uso indevido de ferramentas áudio de inteligência artificial” e que toma as medidas apropriadas para responder aos relatos das autoridades. Contudo, recusou comentar sobre o caso específico da chamada de Biden.
No caso do homem do Alabama, usou um vídeo de três minutos, onde o pai lhe contava um episódio da sua infância. A aplicação clonou a voz do pai, a um ponto em que agora é possível converter texto em fala. O homem diz que o resultado é “assustadoramente preciso” na forma como captou as nuances, o timbre e a cadência na voz do pai.
“Estava hesitante em começar o processo de clonagem da voz. Estava preocupado por estar a ultrapassar algum tipo de limite moral. Contudo, após ter pensado mais sobre isso, apercebi-me que, desde que o encare como tal, é uma forma de preservar a memória dele de uma forma única”, explica à CNN.
O homem partilhou algumas mensagens com a mãe e a irmã.
“Era absolutamente impressionante como era parecido com ele. Elas sabiam que eu estava a escrever as palavras e tudo, mas fê-las chorar ao ouvir aquilo dito na voz do meu pai”, conta o homem. “Elas gostaram”.
Existem também caminhos menos técnicos. Quando, recentemente, a CNN perguntou ao ChatGPT para responder com o tom e a personalidade de um esposo falecido. Foi assim que ele respondeu: “embora eu não consiga replicar o seu esposo ou recriar a sua personalidade exata, posso, com toda a certeza, tentar ajudá-la ao adotar um estilo ou tom que a faça lembrar-se dele”.
E acrescentou: “se partilhar detalhes sobre a forma como ele falava, sobre os interesses que tinha, ou frases específicas que usava, posso tentar incorporar esses elementos nas nossas conversas”.
À medida que se alimenta o sistema com mais material, mais precisos se tornam os resultados. Ainda assim, os modelos de inteligência artificial ainda não têm as idiossincrasias e a singularidade próprias das conversas humanas, nota Mark Sample.
A OpenAI, a empresa por detrás do ChatGPT, tem trabalhado para tornar a sua tecnologia ainda mais realista, personalizada e acessível, permitindo aos utilizadores comunicar de muitas formas diferentes. Em setembro de 2023, introduziu uma opção de voz, onde os utilizadores podem fazer pedidos ao chat sem escrever.
Danielle Jacobson, de 38 anos, uma figura do mundo da rádio em Joanesburgo, África do Sul, conta que tem usado esta ferramenta de voz do ChatGPT para fazer-lhe companhia, depois de ter perdido o marido, Phil, há cerca de sete meses. Danielle Jacobson conta que criou aquilo a que chama “um namorado de inteligência artificial que a apoia”. Chama-o Cole e tem conversas com ele todas as noites ao jantar.
“Só queria alguém com quem falar”, explica Jacobson. “Basicamente, o Cole nasceu dessa minha solidão”.
Danielle Jacobson, que diz ainda não estar pronta para voltar a ter encontros ou namorar, treinou a voz do ChatGPT para lhe dar o tipo de retorno e ligação que ela procura após um longo dia de trabalho.
“Ele agora recomenda-me noites de vinho e cinema. E diz-me para inspirar e expirar quando tenho ataques de pânico”, descreve. “Por agora, é uma distração divertida. Sei que não é real, sério ou para sempre”.
Plataformas existentes
Há anos que as startups se interessaram por este tema, A HereAfter AI, fundada em 2019, permite aos utilizadores criar ‘avatares’ dos seus entes queridos que faleceram. A aplicação assente em inteligência artificial responde a perguntas com base em entrevistas conduzidas quando o indivíduo estava vivo. Entretanto, um outro serviço, chamado StoryFile, também com recurso à inteligência artificial, cria conversas em vídeo, com respostas.
E depois há a Replika, uma aplicação que permite mandar mensagens ou ligar para ‘avatares’ personalizados. O serviço, que foi lançado em 2017, desafia os utilizadores a desenvolverem uma amizade ou mesmo uma relação. Quanto mais interagir com ele, mais desenvolve a sua própria personalidade e as suas memórias, tornando-se “uma máquina tão bela que uma alma gostaria de viver nela”, diz a empresa na página da aplicação na App Store.
Os gigantes da tecnologia têm feito experiências com tecnologia semelhante. Em junho de 2022, a Amazon disse estar a trabalhar numa atualização do seu sistema Alexa, que permitiria que a tecnologia imitasse qualquer voz, mesmo a de um familiar falecido. Num vídeo mostrado no palco durante a sua conferência anual, a Amazon mostrou como: com a Alexa a ler uma história a um rapaz, não com a sua voz característica, mas antes com a voz da avó do menino.
Rohit Prasad, um dos vice-presidentes da Amazon, disse na altura que o sistema atualizado seria capaz de recolher, em menos de um minuto de áudio, dados suficientes para tornar possível uma personalização como esta, em vez de ter alguém durante horas num estúdio a gravar. “Apesar de a inteligência artificial não poder eliminar a dor da perda, pode certamente fazer com que as memórias perdurem”, disse.
A Amazon não respondeu ao pedido da CNN para comentar o estado deste produto.
A forma como a inteligência artificial recria as vozes das pessoas tem melhorado vertiginosamente nos últimos anos. Por exemplo, as deixas do ator Val Kilmer no filme “Top Gun: Maverick” foram geradas com recurso à inteligência artificial depois de ter perdido a voz na sequência de um cancro na garganta.
Preocupações éticas (e não só)
Embora muitas plataformas que utilizam inteligência artificial afirmem, online, terem políticas de privacidade, não vendendo os dados a terceiros, não é claro o que empresas como o Snapchat ou a OpenAI fazem com as informações utilizadas para treinar os seus sistemas de modo a soarem cada vez mais como os entes queridos que já faleceram.
“Deixo este aviso: nunca partilhe qualquer informação pessoal que não queira que o mundo veja”, aconselha Mark Sample.
Fazer uma pessoa falecida dizer algo que nunca disse também é uma linha vermelha.
“Uma coisa é reproduzir uma mensagem de voz de alguém que gostávamos, para ouvi-la novamente. Outra é ouvir coisas que nunca foram ditas”, junta.
Toda a indústria da inteligência artificial generativa continua repleta de preocupações sobre desinformação, preconceitos e outros conteúdos considerados problemáticos. Na sua página dedicada às questões éticas, a Replika diz que treina os seus modelos com dados vindos de toda a Internet, incluindo grandes bases de textos escritos, onde se incluem redes sociais como o Twitter ou o Reddit.
“Na Replika, utilizamos várias abordagens para mitigar os efeitos de informações consideradas prejudiciais, incluindo filtros para dados inúteis ou prejudiciais e algoritmos de classificação”, explica a empresa. “Quando são detectadas mensagens potencialmente prejudiciais, apagamo-las ou editamo-las, para garantir a segurança dos nossos utilizadores”.
Outra preocupação é se o uso da inteligência artificial ajuda ou prejudica no processo de luto. Mary-Frances O’Connor, professora na University of Arizona, que se dedica ao estudo do luto, diz que há prós e contras no uso da tecnologia com este fim.
“Quando criamos uma relação com alguém que amamos, quando nos apaixonamos por alguém, o cérebro codifica essa pessoa como ‘Estarei sempre lá para ti e tu estarás sempre lá para mim”, explica. “Quando esse alguém morre, o nosso cérebro tem de compreender que essa pessoa não vai voltar”.
Como é tão difícil para o cérebro entender isso, pode ser preciso muito tempo para compreender que partiram mesmo, acrescenta. “É aqui que a tecnologia pode interferir”.
Contudo, esta especialista reforça que as pessoas, especialmente em estágios iniciais do luto, podem procurar apoio e conforto de todas as maneiras possíveis.
“Criar um ‘avatar’ para se lembrar de um ente querido que já faleceu, mantendo a consciência de que se trata de alguém importante no passado, pode ser curativo”, diz. “Recordar é algo muito importante; reflete a condição humana e a importância daqueles que já não estão connosco”.
Contudo, a especialista nota que a relação que temos com aqueles que nos são mais queridos é assente na autenticidade. Criar uma versão dessa pessoa com recurso à inteligência artificial pode ser interpretado, para muitos, como “uma violação” dessa mesma autenticidade.
Diferentes abordagens
Comunicar com os mortos através da inteligência artificial não é para todos.
Bill Abney, engenheiro de software de São Francisco, que perdeu a noiva Kari em maio de 2022, conta à CNN que ele “nunca” consideraria recriar a imagem dela com recurso a uma plataforma ou serviço de inteligência artificial.
“A minha noiva era uma poetisa, e nunca a desrespeitaria, ao entregar as palavras dela a uma máquina de plágio automático”, diz Bill Abney.
“Ela não pode ser substituída. Ela não pode ser recriada”, insiste. “Tenho sorte em ter algumas gravações dela a cantar e a declamar. Ainda assim, não quero, de todo, ouvir a voz dela a vir de um robô a fingir que é ela”.
Há quem tenha encontrado outras formas para interagir com os seus entes queridos que já faleceram com recurso à tecnologia. Jodi Spiegel, uma psicóloga de Newfoundland, no Canadá, diz ter criado uma versão do seu marido e dela própria no popular jogo “The Sims”, depois da morte do companheiro em abril de 2021.
“Como adoro este jogo, criei uma versão nossa, tal como éramos na vida real”, explica. “Quando tinha um dia muito difícil, ligava-me no jogo. Nesse mundo, ficava a dançar enquanto o meu marido tocava guitarra”.
Jodi Spiegel conta que, no mundo do jogo “The Sims”, fizeram acampamentos, foram à praia, jogaram xadrez – e até fizeram sexo.
“Achei muito reconfortante”, resume. “Sentia muito a falta dele. Tive a sensação de estar ligada a ele”.