No decorrer dos últimos anos, a cidade inteligente vem ganhando significativo espaço sobre o modo de fazer as coisas no contexto da experiência da vida urbana. Uma pluralidade de visões sobre o conceito vem sendo apresentadas e absorvidas pelos municípios brasileiros como um fio condutor para priorização de políticas públicas locais e alocação de investimentos em serviços e infraestrutura urbana, posicionando a cidade inteligente como o paradigma da urbe ideal do contexto econômico-político contemporâneo.
Apesar dos primeiros registros sobre a adjetivação “inteligente” como prática ideal de uma cidade ser anterior ao conjunto de fenômenos que tem se conformado como uma quarta revolução industrial, é neste contexto, de ubiquidade das tecnologias digitais, que a noção de cidade inteligente é globalmente expandida como experiência ideal da vida urbana a ser perseguida pelos governos locais. Talvez por essa razão, a primeira impressão que se visualiza no ideário comum da cidade inteligente sejam promessas de uma vivência social praticada em territórios urbanos mais eficientes e seguros, com serviços públicos e infraestrutura operados por intermediação digital.
Entretanto, para que os benefícios da noção de cidade inteligente sejam de fato percebidos pelos nossos municípios, é preciso que toda essa tecnologia que vem sendo alcançada e difundida nos últimos anos seja posicionada aos problemas reais das cidades de hoje. No Brasil, especialmente, os municípios comumente encontram desafios econômicos e orçamentários para provisão da infraestrutura adequada para prestação de suas tarefas executivas materiais, de modo que a noção de cidade inteligente deve ser empregada para entregar soluções criativas para problemas concretos e demandas contemporâneas em nossas cidades.
Um desafio concreto inerente às cidades contemporâneas é, sem dúvidas, a necessidade de mobilização de estratégias de investimento em infraestrutura resiliente para sua adaptação às mudanças climáticas. Ondas de calor, grandes tempestades, enchentes e inundações são desafios já comuns impostos às cidades hoje em dia que, em larga medida, ainda estão estruturalmente despreparadas para lidar com eventos extremos cada vez mais comuns e mais intensos. É o que visualizamos, por exemplo, com as catástrofes climáticas recentes que acometem as cidades do Rio Grande do Sul e que além de levarem vidas humanas geram uma vastidão de prejuízos materiais e sociais à população.
Não à toa, a própria Carta Brasileira para Cidades Inteligentes indica entre suas recomendações o desenvolvimento de metodologias, dados e indicadores que respondam às mudanças climáticas e viabilizem condições aos municípios para atuar nas frentes de adaptação aos eventos climáticos extremos, contexto em que os serviços de drenagem e manejo de águas pluviais urbanas ocupam inarredável centralidade.
Estes serviços, conforme prescreve o Marco Legal de Saneamento Básico, são constituídos pelas “atividades, pela infraestrutura e pelas instalações operacionais de drenagem de águas pluviais, transporte, detenção ou retenção para o amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das águas pluviais drenadas, contempladas a limpeza e a fiscalização preventiva das redes”.
Como exemplo de componentes destas ações, podem ser mencionadas as redes de drenagem pluvial, que facilitam o escoamento das águas das chuvas por meio de sistemas de tubulações subterrâneas conectados entre si, responsáveis por coletar e conduzir as águas até pontos de destino adequados e as bocas de lobo, que consistem em aberturas nas vias púbicas, que permitem que a água seja drenada até a rede de escoamento.
Já como técnicas de manejo das águas pluviais urbanas, podem ser destacados os telhados verdes, que consistem em áreas vegetadas, que tem por finalidade contribuir para a infiltração e retenção do escoamento superficial da água de chuva, bem como a reutilização das águas pluviais, que consiste na utilização da água pluvial para fins não potáveis.
Tanto a drenagem como o manejo das águas pluviais são processos fundamentais para que as águas provenientes das chuvas nas áreas urbanas sejam geridas de forma adequada. São serviços que minimizam os impactos negativos das precipitações, tais como alagamento e enchentes e contribuem com a preservação dos recursos hídricos, com a prevenção à proliferação de doenças e, assim, com a melhoria da qualidade de vida da população das nossas cidades.
Dessa maneira, levando em consideração o contexto atual, marcado por mudanças climáticas que são materializadas, dentre outros efeitos, por padrões de chuva mais intensos e imprevisíveis, aliados à carência de infraestrutura em diversas cidades do país, o investimento nesse tipo de atividade se mostra fundamental, para que as cidades possam, de fato, se adaptar à essa realidade.
Defende-se, portanto, que o investimento em drenagem urbana e manejo das águas pluviais está intrinsicamente relacionado à promoção de cidade mais inteligentes, uma vez que por meio dessas infraestruturas é possível viabilizar com que as cidades lidem com os eventos climáticos extremos de forma mais resiliente.
Em outras palavras, é dizer que se a cidade inteligente deve se preocupar com as demandas reais apresentadas pela infraestrutura de nossos municípios, uma cidade que se projeta como há que se preparar para prevenir, lidar e se recuperar dos efeitos das mudanças climáticas, de maneira que o investimento em infraestrutura, incluídos os serviços de drenagem e manejo de águas pluviais, mostra-se um caminho de extrema importância para que isso se concretize.
Um importante passo neste sentido está sendo dado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA). Desde o novo Marco Legal, em 2020, a agência tem desempenhado um papel central no aprimoramento do ambiente regulatório dos serviços públicos de saneamento básico, sendo a ela conferida a atribuição para edição de Normas de Referência (NR) que garantam segurança jurídica, eficiência e sustentabilidade na prestação de serviços desta natureza.
Recentemente, a ANA iniciou o processo de elaboração da norma de referência para prestação dos serviços de drenagem e manejo de águas pluviais urbanas (DMAPU), a partir da Tomada de Subsídios 01/2024.
Para promover a participação da sociedade e construir uma norma que efetivamente contribua para a evolução na prestação destes serviços nas cidades brasileiras, a ANA realizou reuniões abertas de discussão geral, cujos tópicos abordados se dividiram em cinco blocos principais: (i) atividades envolvidas na prestação do serviço, que incluem planejamento, articulação com outros instrumentos, execução de obras, operação e manutenção, administração, regulação (fiscalização e normatização) e serviços complementares; (ii) responsabilidades dos atoes envolvidos na prestação dos serviços; (iii) componentes essenciais dos serviços de drenagem e manejo de águas pluviais urbanas que devem ser abordados na norma; (iv) período necessário para adequação dos titulares à norma e; (v) particulares regionais com relação à prestação dos serviços.
O período de contribuições para a tomada de subsídios se encerrou no começo do mês de maio, estando previsto no cronograma de atividades da ANA a disponibilização de uma primeira versão da norma para audiência e consulta pública a partir do final de agosto deste ano.
Neste contexto, há que se reconhecer que as mudanças climáticas já são uma realidade que apresenta desafios concretos às nossas cidades. Por isso, estratégias de consolidação de um valor de cidade inteligente sobre os municípios brasileiros devem considerar não apenas o incremento digital na prestação de suas atribuições materiais, mas soluções criativas e tecnológicas sobre infraestruturas urbanas resilientes que contribuam decisivamente para a adaptação de nossas cidades aos já muito recorrentes eventos climáticos extremos, sobre o que os serviços de drenagem e manejo de águas pluviais urbanas são de urgente relevância.
Embora as atividades da ANA neste sentido representem um passo fundamental para viabilização de investimentos em drenagem e manejo de águas pluviais, há ainda um caminho importante a ser percorrido pelos municípios brasileiros até a efetiva prestação destes serviços, essenciais para que nossas cidades se consolidem como territórios urbanos inteligentes e resilientes.
LEANDRO TEODORO ANDRADE – Doutor em Direito Econômico pela USP e mestre em Direito Público pela Unesp. Atua na área de infraestrutura da Spalding Sertori Advogados
BEATRIZ GODOY – Graduada em Direito pela UFMG. Pós-graduanda em ESG e Sustentabilidade Corporativa pela FGV. Atua na área de infraestrutura da Spalding Sertori Advogados
LEONARDO FREY CHAVES – Pós-graduado em Direito Digital pela UERJ. Atua na área de infraestrutura da Spalding Sertori Advogados