No final de 2023, o Congresso aprovou a Lei nº 14.611/2023, visando a promover a igualdade salarial entre homens e mulheres. O objetivo da Lei de Igualdade Salarial vai além do combate à discriminação de gênero, pois estabelece mecanismos capazes de abarcar também outras formas de discriminação sedimentadas ao longo do tempo e que resultaram em privilégios de remuneração, promoção e lideranças masculinas e brancas.
É verdade que a igualdade entre homens e mulheres já está prevista na Constituição como um dos pilares da república. Também é verdade que a Consolidação das Leis Trabalhistas já prevê normas de proteção ao trabalho da mulher, inclusive para corrigir distorções e evitar discriminação de gênero. Ainda assim, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontou que, até 2022, mulheres recebiam em média 20% a menos que os homens em todo o mundo [1].
A Lei de Igualdade Salarial não apenas reitera esse objetivo, mas também introduz mecanismos práticos para alcançá-lo, como a exigência de publicação de relatórios de transparência.
A transparência salarial em políticas públicas voltadas a combater a discriminação de gênero no ambiente laboral não é exclusiva do Brasil: também está presente em diversos países da União Europeia, Chile e Canadá, por exemplo.
Em 2022, a OIT publicou um estudo detalhando as implicações de leis de transparência para empregados e empregadores, no qual analisou argumentos favoráveis e contrários, bem como os dados obtidos em países que já possuem medidas previstas em suas legislações internas.
Embora as medidas variem de país para país, a OIT identificou que leis de transparência salarial são um instrumento importante para reduzir a discrepância na remuneração entre homens e mulheres [2].
A forma como a Lei de Igualdade Salarial introduziu o mecanismo do relatório de transparência gerou, contudo, dúvidas para além da seara trabalhista devido à possível incidência de normas de direito concorrencial e proteção de dados pessoais.
O objetivo deste texto é contribuir para o debate e, dentro do possível, esclarecer alguns dos questionamentos no que diz respeito aos dados pessoais.
O artigo 5º da lei prevê a obrigatoriedade de empresas com mais de 100 empregados publicarem semestralmente relatórios de transparência salarial, com detalhes sobre critérios remuneratórios, sob pena de multa de até 3% sobre o valor da folha de pagamento, limitada a 100 salários-mínimos.
Serão duas formas de publicação: diretamente pelas empresas e por meio da plataforma digital do Poder Executivo federal. A primeira publicação ocorrerá entre 15 e 31 de março de 2024.
Divulgação do relatório
O detalhamento sobre a publicação do relatório de transparência consta do Decreto nº 11.795/2023, editado pelo Poder Executivo federal. Conforme seu artigo 2º, § 3º, o relatório deve ser “publicado nos sítios eletrônicos das próprias empresas, nas redes sociais ou em instrumentos similares, garantida a ampla divulgação para seus empregados, colaboradores e público em geral“.
Já a especificação de quais dados devem ser publicados está prevista na Portaria do Ministério do Trabalho e Emprego nº 3.714/2023. Segundo o artigo 3º dessa portaria, o relatório será composto por duas seções. A primeira seção incluirá quatro grupos de dados, extraídos do eSocial: cadastro do empregador, número de empregados da empresa por estabelecimento, número total de trabalhadores separados por sexo, raça e etnia, com os respectivos valores do salário contratual e remuneração mensal e cargos ou ocupações disponíveis, conforme Classificação Brasileira de Ocupações (CBO).
A segunda seção conterá dados obtidos do Portal Emprega Brasil. Nesta parte, serão informados: a presença ou ausência de um quadro de carreira e plano de cargos e salários, critérios remuneratórios para acesso e progressão ou ascensão dos empregados, existência de incentivo à contratação de mulheres, identificação de critérios adotados pelo empregador para promoção a cargos de chefia, de gerência e de direção e existência de iniciativas ou de programas, do empregador, que apoiem o compartilhamento de obrigações familiares.
A portaria enfatiza que o valor da remuneração, para fins de comparação, deve incluir todas as rubricas pagas ao empregado.
Como se vê, trata-se de um relatório robusto, que pode incluir informações particularmente sensíveis para algumas empresas, notadamente do ponto de vista concorrencial. O papel da proteção de dados, por outro lado, é significativamente mais restrito, o que foi reforçado recentemente pelo Ministério do Trabalho e Emprego. E isso porque dificilmente os dados contidos no relatório poderão ser classificados como “pessoais”.
Dados sensíveis x LGPD
Dado pessoal, vale lembrar, é somente a informação que permite identificar uma pessoa natural: nome, CPF, endereço, número de telefone, e-mail. Se esses dados puderem gerar algum tipo de discriminação, a LGPD os reputa “sensíveis”. É o caso da raça, etnia, orientação sexual, convicção religiosa e filiação sindical, por exemplo.
Essa delimitação já restringe o âmbito de aplicação da LGPD, que não afeta dados da pessoa jurídica, tampouco políticas internas e programas relacionados ao plano de carreira. Considerando a estrutura da portaria, apenas a primeira seção mostra-se apta a atrair uma possível aplicação da legislação de proteção de dados pessoais.
Como o relatório é um instrumento de combate à discriminação, alguns dados “sensíveis” também precisarão ser informados, como raça e etnia. A questão é que a mera indicação de raça ou etnia não necessariamente permite identificar uma pessoa natural — da mesma forma que a mera divulgação de cargo e remuneração pode não resultar em uma identificação. Por vezes, é somente a combinação de alguns dados que os torna pessoais.
Nesse sentido, a lei, o decreto e a portaria fazem referência à necessidade de que os dados reportados pelas empresas sejam “anonimizados”. A LGPD define a “anonimização” como a “utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis no momento do tratamento, por meio dos quais um dado perde a possibilidade de associação, direta ou indireta, a um indivíduo“.
A anonimização envolve o uso de técnicas que removem a possibilidade de identificar direta ou indiretamente o indivíduo, afastando, por isso, a incidência da LGPD. Se o processo de anonimização puder ser revertido, todavia, permitindo a identificação das pessoas a quem os dados dizem respeito, então a LGPD será aplicável, sujeitando a empresa à fiscalização e penalidades em caso de descumprimento.
Mas, ainda que o processo de anonimização seja revertido e os dados possam ser caracterizados como pessoais, é importante lembrar o motivo da sua divulgação: de um lado, o cumprimento de uma obrigação legal do empregador; de outro, a possibilidade de exercício de direitos (como a renegociação salarial, caso constatada uma disparidade) pelos titulares. Tais motivos são elencados pelo artigo 7º, incisos II e VI, e artigo 11, inciso II, alíneas ‘a’ e ‘d’, da LGPD, como hipóteses que autorizam o tratamento de dados pessoais.
É importante lembrar, nesse sentido, que a LGPD não impede a publicidade de dados pessoais, principalmente quando o tratamento dos dados tem por objetivo promover objetivos legítimos, como é o caso da igualdade de gênero no ambiente de trabalho.
O que a LGPD exigirá, caso venha a ser aplicável, é a correta delimitação da finalidade do tratamento, a adequação e a necessidade da divulgação dos dados (debatidas também durante a tramitação do Projeto de Lei nº 1085/2023), bem como a adoção de medidas para prevenir a ocorrência de danos e garantir a segurança dos titulares.
Uma certeza, porém, existe: a LGPD — caso se aplique, em caso de eventual impossibilidade de anonimização dos dados — não representa nenhum entrave ao cumprimento da Lei de Igualdade Salarial. Os objetivos da legislação podem ser compatibilizados com a autodeterminação informativa, inclusive para fomentar medidas práticas que sejam necessárias para reduzir — e com esperança — extinguir a disparidade salarial entre homens e mulheres.
Por: Camila Maruyama e Daniele Verza Marcon