Primeira eleição brasileira após popularização da IA será ‘laboratório’; estudiosos defendem aplicação da mesma tecnologia para combater seu mau uso
Recém-popularizadas, as ferramentas de inteligência artificial (IAs) para gerar textos, áudios e imagens serão incorporadas pela primeira vez em uma disputa política brasileira no ano que vem. Elas podem ajudar a reduzir custos e automatizar peças de propaganda, e tornam mais complexas as campanhas de desinformação, ao produzirem conteúdos que são mais difíceis de se detectar como falsos ou editados.
As eleições municipais serão como uma espécie de “laboratório” para que candidatos e seus apoiadores testem as possíveis aplicações dessas tecnologias, inclusive para a corrida presidencial dois anos depois. A avaliação é de pesquisadores estudiosos do tema ouvidos pelo GLOBO.
Entre as peças que podem ser automatizadas para as campanhas estão vídeos e imagens para plataformas como Instagram, TikTok ou WhatsApp, que também podem ser customizadas para diferentes nichos de eleitores. Já quanto à disseminação de desinformação, uma das principais preocupações é com os chamados deepfakes, vídeos que, em geral, combinam falas a imagens já existentes.
— Teremos montagens, deepfakes e uso de IA para manipulação de imagens e informações de forma mais generalizada. Você consegue fazer criações ou alterações de contexto de uma forma muito mais simplificada — resume a professora Yasmin Curzi, da FGV Direito Rio.
Exemplo argentino
As eleições argentinas, no mês passado, apontaram para algumas tendências. Tanto o presidente eleito, Javier Milei, quanto o candidato peronista Sergio Massa, e seus respectivos apoiadores, adotaram essas tecnologias para produzir materiais de campanha. Um caso com ampla repercussão foi o de um vídeo manipulado em que se inseriu o rosto de Massa no lugar do de outro homem que aprecia em imagens de 2016 cheirando um pó branco. O objetivo era associar o candidato, que acabou derrotado, ao uso de cocaína. Mais recentemente, uma imagem falsa mostrou Milei ajoelhado diante do presidente da China, Xi Jinping.
Para além da criação de textos e imagens, Francisco Brito Cruz, do InternetLab, vê espaço para o uso de IAs em tarefas e estratégias menos visíveis das campanhas, como o direcionamento de propaganda e a criação de chat bots para interagir com eleitores ou para alimentar contas falsas.
— Em geral, a disputa municipal é uma eleição de teste por ser mais pulverizada. Há toda uma cauda de possíveis usos dessas tecnologias. Veremos quais aplicações vão vingar ou não. Outro aspecto é que se tornou inevitável que as campanhas gastem com mídia na internet, se quiserem ser vistas. Vão ser raras as campanhas que vão viralizar por conta própria — acrescenta Cruz.
Parte dos pesquisadores avalia que monitorar casos de desinformação associados ao uso dessas novas tecnologias será um desafio ainda maior no contexto dos pleitos municipais. A disputa em 2024 é mais capilarizada e há diferenças nas estruturas dos tribunais regionais eleitorais nos estados.
Diretor da Escola de Comunicação da FGV, Marco Aurélio Ruediger vê a disputa municipal como um “aquecimento” para 2026. Ele avalia que o impacto pode ser mais evidente nas grandes cidades, em que há candidatos com maior estrutura para investir nessas tecnologias. Do ponto de vista das instituições, avalia o pesquisador, será preciso buscar formas de aplicar a própria tecnologia para detectar seu uso.
— Você tem que criar máquinas de inteligência artificial para ajudar na checagem do uso de inteligência artificial para distorcer o processo eleitoral — diz Ruediger.
O alerta também é feito pela cientista da computação Nina da Hora, diretora do Instituto da Hora, que avalia que a experimentação com IAs pelas campanhas já deve ocorrer logo no primeiro semestre, período que servirá como um termômetro para as eleições.
— A questão é ter uma estratégia que comece o quanto antes. O Brasil está discutindo as regulamentações sobre o uso de IAs e tecnologias digitais no geral. Para as campanhas políticas, isso vai precisar ser acelerado para a gente conseguir evitar práticas antiéticas e ilegais.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), apresentou em maio uma proposta de regulação. O texto teve como ponto de partida um relatório com sugestões apresentadas por um grupo de juristas. Há expectativa de que o tema também apareça em novas resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O prazo para a Corte editar normas se encerra em 5 de março.
Cobrança do TSE
O presidente do tribunal, ministro Alexandre de Moraes, já sinalizou que o tema é prioridade na Corte Eleitoral. Ele cobrou no início do mês que o Congresso crie uma legislação específica para responsabilizar quem utiliza a tecnologia para tentar influenciar de forma irregular o voto de eleitores. A interlocutores, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) afirmou que essa pauta terá preferência na Casa em 2024. Moraes também defendeu a cassação e inelegibilidade de candidatos que utilizarem inteligência artificial para desvirtuar o debate eleitoral.
Em outra frente, o TSE firmou um acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) para facilitar a comunicação entre os dois órgãos para o cumprimento de decisões judiciais que determinem bloqueio de sites. Um dos focos da medida será o combate a desinformação com uso de IA.
Fonte: O Globo