Figurando tanto como um dos agentes causadores do clima alterado quanto uma das principais soluções, a pauta alimentar é uma das grandes bandeiras dos Emirados Árabes Unidos na COP28

Os sistemas alimentares estão na lista das atividades humanas que emitem gases de efeito estufa e contribuem para o aquecimento global – segundo estudo publicado na revista Nature, eles respondem por um terço das emissões globais. Esses mesmos sistemas alimentares, porém, também aparecem ao lado dos setores da sociedade que são afetados pelas mudanças climáticas.

Neste dia 10 de dezembro, as discussões na COP, conferência do clima, que acontece em Dubai (Emirados Árabes) são dedicadas à temática de sistemas alimentares. Dignitários e lideranças ministeriais se reúnem para discutir os caminhos, modalidades e oportunidades envolvidas na implementação da Declaração dos Emirados, que enfatiza a transformação da agricultura e dos sistemas alimentares no contexto dos esforços climáticos nacionais, como as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC) e os Planos Nacionais de Adaptação (NAP).

Os efeitos do clima alterado afetam os regimes de produção, a segurança alimentar e a renda dos produtores. Secas e inundações destroem colheitas e infraestruturas de cultivo. A subida do nível do mar faz com que a água salgada penetre nos lençóis freáticos, aumentando a salinidade do solo, o que leva à diminuição dos rendimentos da plantação e aumento dos custos de produção. Os efeitos disso já são visíveis no próprio país que sedia a COP28.

“Percebemos que a água mais salgada em Abu Dhabi afetou a doçura de frutas como a melancia”, disse Roma Vora, cofundadora da Aranya Farms em Abu Dhabi, ao veículo de imprensa árabe The National.

“Nas últimas cinco décadas, as temperaturas na região aumentaram aproximadamente 1,5°C, levando a desafios como a escassez de água, problemas de solo e aumento de infestações de pragas, resultando no abandono de algumas atividades agrícolas por alguns produtores”, disse Mohammad Al Oun, consultor de segurança alimentar e especialista em agricultura inteligente em termos climáticos.

Al Oun detalha que os impactos das alterações climáticas incluem a “diminuição do crescimento e rendimento das culturas, o potencial uso excessivo de pesticidas e fertilizantes, comprometimento da qualidade e segurança alimentar, implicações econômicas, consequências sociais, escassez de água, salinização do solo, eventos climáticos extremos, pragas e doenças e alterações na adequação das culturas”.

Segundo o Banco Mundial, a alta generalizada nos preços dos alimentos no mundo todo afeta 52% dos países de baixa renda, 89% dos países de média renda, 61% dos países de rendimento médio-alto e 67% dos países desenvolvidos. Outros dados da FAO, agência da ONU para alimentação e agricultura, mostram que o custo global de dietas pobres (devido à obesidade, doenças cardíacas e câncer, além de insuficiência de calorias e nutrientes) é de US$ 9 bilhões por ano, com os custos ambientais de produção e consumo de alimentos somando mais US$ 3 bilhões. Com isso, especialistas afirmam, em coro, que a transformação dos sistemas alimentares precisa ser prioridade nas negociações climáticas.

Pressão por mudanças

No evento de abertura deste dia temático, Marian Almheiri, ministra das Alterações Climáticas e Ambiente dos Emirados Árabes Unidos e líder do sistema alimentar para a COP28, anunciou que 152 países assinaram a Declaração dos Emirados sobre Agricultura Sustentável, Sistemas Alimentares Resilientes e Ação Climática, comprometendo-se a integrar os alimentos nos seus planos climáticos até 2025 – no início da conferência, eram 134. Essa quantidade de países representa 5.9 bilhões de pessoas, 518 milhões de agricultores, 73% de toda a comida consumida no mundo e 78% dos gases de efeito estufa gerados no setor de alimentação.

Durante sua fala, mencionou avanços em investimentos, parcerias e sprints de inovação, além da meta nacional de reduzir o desperdício de comida em 50% até 2030. Dos $83 bilhões de dólares mobilizados até o momento durante a conferência, $3.1 bilhão serão destinados aos sistemas alimentares para apoiar a segurança alimentar e o combate às mudanças climáticas.

Em evento durante o World Climate Action Summit, no início da COP28, foi anunciada uma nova parceria entre os EAU e a Fundação Bill e Melinda Gates para a inovação dos sistemas alimentares face às alterações climáticas. Além da Declaração, 155 organizações assinaram um “Call to Action” que pede a transformação dos sistemas alimentares para as pessoas, a natureza e o clima.

“O dia de hoje marca um ponto de virada, incorporando a agricultura sustentável e os sistemas alimentares como componentes críticos tanto para enfrentar as alterações climáticas como para construir sistemas alimentares adequados para o futuro. Juntos, proporcionaremos mudanças duradouras para as famílias, os agricultores e o futuro”, disse Mariam na ocasião. Ela destaca que a Declaração também protege as vidas e os meios de subsistência dos agricultores que vivem na linha da frente das alterações climáticas.

Ani Dasgupta, presidente e CEO do World Resources Institute pontuou na ocasião que o lançamento dessa declaração envia “um sinal poderoso às nações do mundo” de que só poderemos frear o aquecimento “se agirmos rapidamente para mudar o sistema alimentar global na direção de uma maior sustentabilidade e resiliência”. Para ele, todos os países devem sair da COP com o compromisso de incorporar os sistemas alimentares na próxima ronda de NDCs e “chegar à COP29 e à COP30 com progressos reais em mãos”.

Nas negociações de hoje, os líderes devem traçar o roteiro para a implementação da Declaração até 2025 e apresentar os melhores esforços dos seus países, ferramentas e plataformas políticas. A negociação também deve ver o lançamento de um “kit de ferramentas de estruturas climáticas para alimentos”, legado da COP28 para apoiar os signatários a implementarem o documento.

Os cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já apontaram as soluções eficazes para mitigar as mudanças climáticas e promover adaptação dependem de desenvolvimento resiliente e medidas holísticas, o que inclui o setor agrícola e os sistemas alimentares.

“Já temos soluções para enfrentar as mudanças climáticas, e muitas dessas soluções, quer sejam agrossilvicultura, recuperação de solos, pecuária sustentável ou gestão da pescas, têm múltiplos benefícios, pois também podem apoiar o uso sustentável da biodiversidade, bem como ajudar com a segurança alimentar, benefícios múltiplos das mesmas soluções que apenas a agricultura e os sistemas alimentares oferecem”, comenta Kaveh Zahedi, diretor da FAO para Mudanças Climáticas, Biodiversidade e Meio Ambiente, disse em entrevista.

Avanços nos Emirados Árabes

Os EAU estão situados numa região extremamente vulnerável aos impactos das alterações climáticas, sujeito a aumento de temperaturas, mais secas e menos chuvas, elevação do nível do mar e frequência maior de tempestades. Neste contexto, os benefícios a curto prazo da redução das emissões serão cada vez mais importantes para o país.

Entre as inovações adotadas, conforme traz o The National na reportagem, estão a utilização de variedades de culturas resilientes e tolerantes à seca, a melhoria dos fertilizantes, a introdução de técnicas agrícolas verticais para otimizar a utilização da terra e a instalação de estufas para proteger as culturas das condições climáticas adversas – o que tem sido chamado de agricultura climática, ou agricultura ambiental controlada, que faz uso de cultivo em ambientes controlados, como estufas ou fazendas verticais. Investir em programas de capacitação para os agricultores e incentivar a pesquisa e a inovação na agricultura são fundamentais, segundo Al Oun.

Em parceria com os Estados Unidos, os Emirados Árabes lideram a Missão de Inovação Agrícola para o Clima (AIM for Climate), uma iniciativa para tornar a agricultura mundial mais sustentável e resistente às mudanças climáticas. A coligação une 50 países em torno dos objetivos de aumentar e acelerar significativamente a inovação agrícola ao longo de cinco anos. Lançado em 2021, na COP26, o fundo já soma US$ 13 bilhões em financiamento para projetos que possam diminuir os efeitos das mudanças climáticas, preparar para as consequências e ajudar a tirar as pessoas da pobreza.

Os Emirados Árabes é um dos países que estão já investindo em inovação e transformação nos sistemas alimentares. Em 2019, o país anunciou – como parte da Coalizão Clima e Ar Limpo para Reduzir Poluentes Climáticos de Vida Curta, do Programa Ambiental das Nações Unidas (PNUMA) – o seu foco na adoção de práticas agrícolas inteligentes em termos climáticos, incluindo a agricultura biológica e hidropônica, novas tecnologias e culturas adaptadas ao clima, a fim de reduzir as emissões do setor.

Em 2021, o país lançou o projeto Food Tech Valley, atualmente em desenvolvimento em Dubai. A primeira cidade AgTech do seu gênero no mundo tem o objetivo de servir como um banco de ensaio para inovações agrícolas pioneiras, que vão liderar a transição para sistemas alimentares mais sustentáveis e posicionar o país como um dos principais exportadores de soluções agrícolas climaticamente inteligentes.

No mês de julho, a presidência da COP28 e o Centro de Coordenação dos Sistemas Alimentares das Nações Unidas anunciaram uma nova parceria estratégica que busca elevar o papel dos sistemas alimentares como catalisadores para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e as metas do Acordo de Paris. O objetivo da parceria é convocar processos de apoio mútuo referentes à transformação dos sistemas alimentares e à ação climática, no panorama mais amplo de eventos globais e marcos relacionados com o desenvolvimento sustentável, incluindo a Cúpula dos ODS, a Cúpula do Futuro da ONU de 2024, os Momentos de Balanço dos Sistemas Alimentares da ONU em 2023 e 2025 e as COPs de 2023 a 2025.

Um aspecto central da parceria estratégica é garantir o compromisso dos chefes de Estado e de governos que participam da COP28 para implementar essas ações, facilitando a assinatura da primeira Declaração dos Emirados sobre Agricultura Sustentável, Sistemas Alimentares Resilientes e Ação Climática, que servirá como um compromisso histórico, consolidando a ambição global e estabelecendo os sistemas alimentares como prioridade na agenda climática e no processo da COP nos próximos anos.

Um mês antes da conferência, entre o fim de outubro e o início de novembro, 45 especialistas em agricultura de 35 países e da União Europeia reuniram-se em Roma (Itália) para trocar ideias sobre os próximos passos do Trabalho Conjunto adotado na COP27, em Sharm el-Sheikh (Sharm el-Sheikh Joint Work ou SSJW), na implementação da ação climática na agricultura e na segurança alimentar.

O SSJW é o mecanismo oficial de coordenação da ação alimentar na UNFCCC e terá o seu plano de trabalho negociado na COP28, que tem a alimentação e a agricultura como temas-chave. Os negociadores também explorarão nos dias de conferência as oportunidades de financiamento. Segundo a FAO, somente 4% do financiamento climático vai para esse setor, o que é considerado pouco para as soluções do sistema agroalimentar.

No contexto do Trabalho Conjunto, a adoção de uma abordagem de sistemas alimentares abrangeria, no mínimo, três elementos-chave: produção de alimentos positivos para a natureza; dietas saudáveis e sustentáveis; e perda e desperdício de alimentos. O consumo também deveria estar presente como um pilar, mas continua excluído do SSJW. A mudança nos padrões de consumo, especialmente de carne e produtos lácteos, é um ponto crítico nas negociações sobre o clima, pois a produção de alimentos de origem animal é responsável por dois terços das emissões alimentares e quase 80% da pegada terrestre da agricultura, mas fornece apenas 19% das calorias globais e 41% das proteínas.

Esta história foi produzida como parte da Climate Change Media Partnership 2023, uma bolsa de jornalismo organizada pela Earth Journalism Network da Internews e pelo Stanley Center for Peace and Security.

Texto: Leticia Klein, de Dubai, para o Um Só Planeta