A transformação das fábricas e da cadeia de suprimentos gira em torno de 17 inovações, de acordo com o estudo Tecnologia e Inovação 2023, da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Elas se dividem em três grupos de tecnologias de ponta:
1. as da indústria 4.0: inteligência artificial, IoT, big data, blockchain, 5G, impressão 3D, robótica e drones;
2. as tecnologias verdes: painéis solares, energia solar concentrada, biocombustíveis, biogás e biomassa, energia eólica, hidrogênio verde e veículos elétricos;
3. outras: nanotecnologia e edição genética.
Segundo a agência da ONU, esses campos já representam hoje um mercado de US$ 1,5 trilhão, com perspectiva de chegar a US$ 9,5 trilhões até 2030. A economia do mundo inteiro, hoje, é calculada em US$ 105 trilhões.
Esse crescimento explosivo é uma extraordinária oportunidade para países em desenvolvimento, o Brasil incluído, porque “quando você está no início de uma revolução tecnológica, todo mundo está mais ou menos no mesmo barco”, diz o economista brasileiro Clovis Freire, que coordenou o relatório da Unctad.
Entretanto, quem está abocanhando a maior parte deste bolo são os países desenvolvidos. As exportações de tecnologias verdes de suas empresas saltaram de cerca de US$ 60 bilhões, em 2018, para mais de US$ 156 bilhões, em 2021, enquanto as dos países em desenvolvimento subiram bem menos, de US$ 57 bilhões para US$ 75 bilhões.
As fábricas, nesses países, estão começando a mudar de cara. Primeiro há os cobôs, trabalhando lado a lado com humanos. Depois vêm os sensores dos mais diversos tipos, que fazem com que máquinas se comuniquem com outras (a internet das coisas) e também forneçam, em tempo real, dados do chão de fábrica aos gestores. Em alguns casos, há o auxílio de aparelhos de realidade aumentada e realidade virtual, que permitem visualizar, por exemplo, como uma peça vai se encaixar num mecanismo que ainda não está pronto. Tudo isso acelera a tomada de decisões, aumenta a segurança e reduz custos, afirma a StartUs, uma rede europeia de apoio a startups.
Na Nestlé, aparelhos de realidade aumentada são usados para conexão com a equipe de produção e fornecedores. Nas fábricas da Ford, em Michigan, o índice de acidentes caiu em 83% graças à utilização de exoesqueletos, que protegem os músculos e as articulações dos trabalhadores incumbidos de movimentos repetitivos.
A impressão 3D é, sozinha, uma tecnologia transformadora. Que o diga a alemã Adidas, que fechou uma parceria com a Carbon, fabricante americana dessas máquinas, desde 2016. Outra empresa alemã, a Zellerfeld, iniciou no começo deste ano uma plataforma pela qual se pode escanear os pés por meio de um aplicativo, enviar os dados e receber um par de tênis (ou sapatos) feito sob medida de uma marca da moda, como Rains, Kitty e, em breve, a italiana de luxo Moncler.
As startups têm se destacado nesta revolução. Alguns exemplos: a suíça NematX desenvolveu uma tecnologia de impressão 3D em polímero que, segundo ela, é dez vezes mais resistente que aço e tem aplicações em várias indústrias – da aeroespacial à médica e à eletrônica. A indiana Zeominds tem um software baseado em IA que analisa os fluxos de dados coletados por sensores nas máquinas e identifica falhas e degradação do desempenho, o que reduz o custo de manutenção e aumenta a produtividade. A alemã Deevio criou um sistema de controle de qualidade em que toda a inspeção visual dos produtos é automatizada. A chilena Viga Lab tem um sistema que permite monitorar o desempenho da fábrica por um smartphone. A francesa Weviz desenvolveu um software de visualização colaborativa 3D em tempo real que permite criar protótipos virtuais dos produtos e testar sua ergonomia antes de entrarem em produção.
Os negócios da China
As indústrias chinesas estão no mesmo passo. Não é uma surpresa. O país já é muito diferente daquele que atraiu as companhias ocidentais primordialmente com mão de obra barata. Isso fica claro logo que alguém aterrissa no aeroporto Pudong, em Xangai, e pega o trem de levitação magnética que, em oito minutos, percorre 30 quilômetros até o centro da capital econômica da China.
“Na primeira mensagem que escrevi à minha mulher após chegar à China, disse que tudo o que temos na Europa se encontra aqui e, por vezes, ainda mais e melhor”, disse o jogador de futebol luso-angolano Fábio Abreu, recentemente contratado pelo Beijing Guoan, um dos principais clubes do país.
A China já substituiu a Alemanha como o maior exportador de computadores e outros aparelhos eletrônicos no espaço europeu. Agora, seus avanços no segmento da mobilidade elétrica e em robótica ameaçam o domínio alemão no setor de automóveis.
Se não pode vencê-los, una-se a eles. Em agosto, a alemã Volkswagen anunciou que vai adquirir uma participação de 4,99% da marca chinesa Xpeng por 630 milhões de euros, visando o desenvolvimento conjunto de veículos elétricos.
Em dezembro, a gigante suíça de automação industrial ABB inaugurou em Xangai uma fábrica de robótica de última geração, num investimento avaliado em US$ 150 milhões. “Poucos estão percebendo que a China está liderando o mundo em termos de geração de energia renovável e veículos elétricos”, disse Elon Musk, que em 2019 inaugurou, em Xangai, a maior fábrica da Tesla fora dos Estados Unidos.
Essa dianteira se deve em parte à BYD, que despontou como a mais eficiente produtora global de grandes baterias de íon-lítio. Não só baterias. A BYD entregou em 2022 1,86 milhão de veículos totalmente elétricos e híbridos plug-in, superando as vendas de 1,3 milhão da Tesla em 42%, de acordo com o jornal South China Morning Post.
É dentro da fábrica que está a força da companhia. Com um design novo, química avançada e engenharia de materiais, a companhia reinventou a bateria. Deu-lhe maior capacidade de armazenar energia, vida útil mais longa e segurança superior em relação às concorrentes de íon-lítio mais comuns. Por causa do formato achatado, com um metro de comprimento e 13 cm de altura, a bateria ganhou o nome comercial de Blade Battery. Criada pela superposição de folhas finíssimas de lítio-fosfato de ferro, sua produção exige um maquinário especial – que a própria BYD construiu – e uma linha de montagem comandada por robôs sob vigilância de sensores.
Os robôs não simplesmente melhoram a produtividade – eles permitem feitos que seriam impossíveis numa linha de fabricação tradicional. Na produção de baterias da BYD, o ar precisa estar extremamente seco (umidade abaixo de 1%) e limpo (só são toleradas até 29 micropartículas por metro cúbico, cada partícula com no máximo 1/20, da espessura de um fio de cabelo). Não é ambiente para humanos.
Sob vários aspectos, fazer a transição industrial é para a China mais urgente do que para os demais países, pois seu astronômico crescimento tem dado muitos sinais de esgotamento. Os investimentos estrangeiros – ainda mais numa época em que os governos dos Estados Unidos e de países europeus promovem um de-risking do país – são uma prova de que sua transformação já deu muitos passos, a começar pelo investimento em educação.
Como disse a Época NEGÓCIOS Fernando Colaço, um português que fundou uma empresa de design e programação em Pequim, encontrar talento “especializado e eficiente” na China continua a ser “muito fácil” para os empregadores. Além disso, conta-se no país com uma rápida execução de planos estatais, ótimos serviços de logística e uma avançada infraestrutura.
Digital e sustentável
De certa forma, estamos observando o encontro de duas megatendências: a digitalização e a sustentabilidade. Já se fala de ambas há anos, mas só agora as condições para sua implementação estão maduras.
Uma reforça a outra. Para neutralizar as emissões de carbono até 2050 – meta de consenso no mundo – as empresas precisam de uma transparência operacional só possível quando a cadeia de valor está digitalizada.
Quem consegue reunir as demandas digitais e sustentáveis no mesmo pacote passa a fazer parte da indústria 5.0, conceito que vem sendo adotado na União Europeia para indicar a associação entre as novas tecnologias e a atenção integral aos fatores humano e ambiental.
Em janeiro deste ano o Fórum Econômico Mundial destacou três indústrias com ótimos exemplos de produção sustentável: a produtora chinesa de eletrodomésticos Haier, a alemã Siemens, líder em automação e software industrial, e a fábrica da multinacional de eletroeletrônicos Flex em Sorocaba, interior de São Paulo.
Mas quase todas as grandes empresas estão incrementando seus esforços de inovação. Não surpreende que a maior delas, a Apple, lidere a lista das mais inovadoras do mundo formulada pelo Boston Consulting Group (BCG). Não por coincidência, a empresa também está entre as mais assíduas na reestruturação das cadeias de suprimentos: em 2021, 48 dos seus mais de 180 fornecedores passaram a ter operações nos Estados Unidos, quase o dobro de um ano antes.
No topo da lista do BCG estão ainda a Tesla e o laboratório Moderna. Entre as asiáticas, o destaque vai para a chinesa Huawei, a coreana Samsung e as japonesas Sony e Hitachi. Da Europa, figuram na lista as alemãs Siemens e Mercedes-Benz e as suíças Roche e Nestlé.
É natural que as grandes saiam na frente. Afinal, a transformação exige capital. A Samsung, por exemplo, sétima colocada no ranking do BCG, gastou mais de US$ 17 bilhões – 9% de suas vendas anuais – em pesquisa e desenvolvimento em 2021. Uma das empresas que mais investem em inovação, ela registrou no ano passado 6,3 mil patentes nos Estados Unidos.
Só faltam as pessoas
Automatizar fábricas é a principal solução para manter os custos baixos ante a diminuição de oferta de mão de obra barata. Ela leva, entretanto, a um problema social. A própria China, campeã de investimentos em automação, enfrenta um índice de desemprego recorde entre jovens, tendo atingido 21,3% em agosto (a solução à moda chinesa veio rápida: não mais divulgar os dados relativos à faixa etária entre 16 e 24 anos).
A automação tampouco livra as empresas da dificuldade de encontrar trabalhadores, apenas a desloca. Há menos empregos nas fábricas, mas eles são mais sofisticados. De um lado há, portanto, muita gente desempregada, enquanto de outro haverá, para citar apenas os Estados Unidos, uma lacuna potencial de 2,1 milhões de postos de trabalho não preenchidos em 2030 por falta de pessoas qualificadas, de acordo com um estudo da consultoria Deloitte e da associação de indústrias britânica The Manufacturing Institute. Essa lacuna pode levar a US$ 1 trilhão em perdas para a indústria americana.
Este é provavelmente o ponto mais delicado de toda a tendência de revolução industrial: para que não leve a sofrimento, é essencial investir nas pessoas – de forma ainda mais abrangente, cuidadosa e inovadora do que se deve investir nas máquinas.
Conheça as 17 tecnologias
As inovações que se complementam, potencializam… e expandem a eficiência das empresas
Internet das coisas (IoT)
A conexão entre aparelhos dá rapidez e eficiência a linhas de montagem, centros de distribuição ou mesmo em criações de peixes. Seu mercado é hoje de US$ 740 bilhões, e pode chegar a US$ 4,4 trilhões até o final da década.
Inteligência artificial (IA)
Ficou famosa com o ChatGPT, mas já vem sendo usada há anos em robôs autoprogramáveis em fábricas, software de investimentos, análises financeiras, carros semiautônomos. Seu mercado pode passar de US$ 1,5 trilhão em 2030.
Big data
Enormes quantidades de informação impossíveis de capturar, organizar e analisar pelos sistemas tradicionais – mas que computadores poderosos podem encontrar e usar para fornecer novas perspectivas, desvendando oportunidades antes camufladas para as companhias.
Energia solar concentrada
Usinas que usam espelhos para concentrar os raios solares e gerar calor, bastante calor, ou seja, energia livre de carbono em locais onde incide a luz solar.
Blockchain
Base tecnológica do mercado das criptomoedas, fornece uma cadeia de documentos imutáveis, supervisionados por uma rede de computadores sem necessidade de uma autoridade central. Permite transações mais abertas, seguras e rápidas.
5G
Com velocidades de download de 1 a 10 gigabytes por segundo, de dez a cem vezes mais rápida que sua antecessora, a 4G, esta rede permite conexões de baixa latência (tempo de resposta), o que possibilita aplicações como direção autônoma, automação de armazéns, cirurgia robótica… além de streaming de filmes 4K.
Impressão 3D
A manufatura aditiva, na linguagem técnica, permite produzir objetos tridimensionais a partir de um arquivo digital. Não só impacta o transporte de bens como permite que diferentes produtores colaborem de lugares distantes – e gastando muito menos matéria-prima.
Robótica
Os robôs estão nas fábricas há muito tempo, mas sua evolução (graças à IA, por exemplo) permite que trabalhem lado a lado com humanos em uma variedade enorme de funções.
Drones
Um dos tipos de robôs que merecem atenção especial porque… voa. Podem ser usados para a guerra, mas há aplicações muito mais positivas, como espargir nutrientes em plantações, fazer entregas, vigilância e fotos aéreas.
Biocombustíveis
Alternativa aos combustíveis fósseis. O Brasil já domina há décadas a tecnologia do etanol, um dos produtos provenientes de biomassa, que emite muito menos poluentes.
Energia eólica
Teve uma evolução gigantesca nos últimos anos, com o tamanho das turbinas crescendo vigorosamente, especialmente em locais offshore (no mar). Deve representar um mercado de US$ 175 bilhões em 2030.
Célula fotovoltaica
É a tecnologia que transforma a luz do Sol em corrente elétrica. A energia solar não vai durar para sempre: o Sol deve se apagar daqui a uns 5 bilhões de anos. Durante esse tempo, a célula ajuda a usar sua energia em sistemas fora da rede pública, dando muito mais autonomia.
Biogás e biomassa
Biomassa é o material orgânico que vem de árvores, plantas e lixo orgânico. Pode ser usado para combustível (caso do etanol) ou para geração de calor e eletricidade.
Hidrogênio verde
É aquele produzido com energia renovável, principalmente pela eletrólise da água. A grande vantagem é que pode ser armazenado. Pode-se usar, por exemplo, parte da energia solar ou eólica para produzir hidrogênio verde. Seria quase como estocar o vento.
Carros elétricos
Não fazem barulho, não poluem e ainda poderiam ser usados para armazenar energia renovável. Seu mercado hoje já é gigantesco, US$ 163 bilhões, e pode saltar para mais de US$ 800 bilhões até o final da década.
Edição genética
Essa tecnologia consiste em cortar, modificar e reinserir pedaços de genes na cadeia produtiva de moléculas dos corpos vivos (o DNA). As aplicações são espetaculares, como na criação de antibióticos ou na produção de plantas mais resistentes às mudanças climáticas.
Nanotecnologia
É a ciência que mexe com objetos menores que 1 micrômetro (um milionésimo de metro, ou um milésimo de um milímetro). Suas aplicações vão da fabricação de camadas protetoras em roupas até terapia genética, membranas purificadoras ou até substitutos do silício em chips eletrônicos.
* Com Ulisses Cavalcante, de Shenzhen