A decisão do júri do Prêmio Jabuti de desclassificar as ilustrações do designer Vicente Pessôa no livro “Frankenstein”, inicialmente indicado ao prêmio, por terem sido criadas usando a solução de IA generativa Midjourney, gerou polêmica na mídia e nas redes sociais. Segundo a Câmara Brasileira do Livro (CBL), organizadora do Jabuti, as obras geradas por IA não são elegíveis para o prêmio, embora este entendimento não esteja explicitado no regulamento.
Polêmica semelhante, com desfecho distinto porque o prêmio foi mantido, aconteceu no concurso anual de arte da Feira Estadual do Colorado, em setembro de 2022, que concedeu a “fita azul” para artistas emergentes à obra “Théâtre D’opéra Spatial”, de Jason Allen, criada com o mesmo recurso de IA, o Midjourney. Na ocasião, a comunidade artística se dividiu: parte atacou Allen e o concurso, e outra parte considerou que não havia diferença entre usar a IA e usar recursos de manipulação de imagens digitais, justificando que “a criatividade humana ainda é necessária para encontrar os prompts certos para gerar uma peça premiada”.
Os argumentos dos jurados e dos apoiadores da decisão do Jabuti, em geral, indicam um desconhecimento de como funcionam os modelos de IA generativa, além de misturarem dois temas distintos: a) se são criativas produções realizadas com IA, e b) como agir com relação às obras protegidas por direito autoral utilizadas para treinar os sistemas de IA (“3Cs”: crédito, compensação e consentimento). O primeiro tema tem aderência direta ao evento do Jabuti.
A interação entre criadores e tecnologia é histórica: tradicionalmente, criamos com suporte de uma tecnologia (computador, câmara fotográfica, filmadora, recursos de edição, para citar tecnologias mais recentes). O desafio é identificar se a interface artista-ilustrador com os modelos de IA generativa representa uma mudança de natureza comparativamente às interações com tecnologias anteriores, e se essa natureza desqualifica a imagem resultante como obra artística.
Primeiramente, a IA não é neutra, mas ela igualmente não é autônoma; as ilustrações do livro “Frankestein”, por exemplo, não derivam de um mero preenchimento pelo Vicente Pessôa de um prompt, mas, sim, de um processo interativo entre o ilustrador e a tecnologia; da mesma forma que uma câmara fotográfica de última geração não transforma ninguém em fotógrafo, o acesso aos modelos de IA generativa não torna ninguém criativo.
A técnica de IA que permeia quase todas as implementações atuais é um modelo estatístico que identifica padrões em grandes conjuntos de dados (redes neurais profundas, em inglês, deep learning); neste sentido, ela gera resultados inéditos (textos, imagens que não existiam antes), mas não criativos exatamente, porque reproduz o padrão, e criatividade pressupõe o acréscimo de algo ao padrão (caso contrário, todos os humanos seriam criativos). Para elucidar essas questões, nada melhor do que dar a palavra a um artista.
Pedro Garcia, no painel sobre IA e Arte no Congresso de IA da PUC-SP e PUC-Campinas realizado em 7 e 8 de novembro, descreveu suas experiências com a IA generativa, particularmente o Midjourney, responsável por potencializar seu processo criativo, expandir sua criatividade preservando a autoralidade (o artista se sentir autor da obra). Quando uma imagem surge no Midjourney, o interesse de Garcia é identificar quais sentimentos a imagem está despertando, e como ele vai transmitir aqueles sentimentos e, simultaneamente, adicionar camadas para legitimar a autoralidade da obra.
Para compreender como os prompts geram as imagens, e adquirir fluência expressiva para, ao pensar uma ideia, identificar a linguagem apropriada para interagir com o prompt, Garcia recomenda a plataforma Lexica.art. “Quando uma tecnologia surge, ela não é nada. São os seres humanos que encontram formas de utilizá-la para transmitir suas emoções, emoções que vão dotando as imagens de vida, de alma”, pondera Garcia.
Vale observar os múltiplos movimentos artísticos baseados em IA – ultra factual, arte genética, proceduralismo, arte transumanita, entre outros -, e os sites dedicados a esses artistas – The Algoritmos, Algorithmic Worlds, The Art. O Alan Turing Institute (ATI) atesta que um número crescente de artistas está experimentando a IA no aprimoramento de suas criatividades. Essa multiplicidade inclui, inclusive, a Ai-Da, considerada a primeira artista-robô humanoide. Criada pelo galerista britânico Aidan Meller e por cientistas das Universidades de Oxford e Leeds, na Inglaterra, a “artista” tem câmeras instaladas em seus olhos e, com o uso de inteligência artificial, cria desenhos, esculturas e pinturas abstratas; seu nome é uma homenagem a Ada Lovelace, matemática britânica e pioneira da computação.
Voltando ao Prêmio Jabuti, chama a atenção o fato de que, em novembro de 2023, exatamente um ano após a disponibilização pública do ChatGPT, que transformou a IA no hype da vez, o concurso literário mais importante do país não tenha se preparado para a possibilidade de serem submetidas ilustrações criadas com o uso de IA generativa. Em tempo: como os jurados asseguram que outras ilustrações submetidas ao Jabuti não tenham usado uma solução de IA generativa, ou os textos de livros submetidos ao Jabuti não tenham sido escritos com o auxílio do ChatGPT?
Fonte: Época Negócios