Ponto por ponto, os fios do bordado tecem uma narrativa visual… no kraft. Embora, essa técnica de artesanato seja mais associada ao tecido, foi outro suporte que Daniella Magalhães escolheu para dar vida a um hobby e, depois, o transformou em negócio, a Parafina Papelaria, curso online de bordado no papel.
Dani, 31, nunca tinha bordado na vida — nem em tecido –, quando, em 2018, fez as capas de seus primeiros três caderninhos com essa técnica, que aprendeu “na raça”, usando como inspiração uma postagem no Pinterest. Hoje, ela já ensinou mais de 3 700 alunas (90% são mulheres) sobre o bordado no papel e segue com um propósito firme, após esses anos:
“Quero mostrar que essa é uma arte para vários tipos de pessoas, idades e porquês, que é algo prático e que as pessoas conseguem bordar sem ter experiência prévia, que não é necessário nascer com um dom de artista para fazer isso”
O caminho para chegar até aqui e a essas conclusões, ao lado de seu sócio e companheiro, Pedro Piragibe Freire, 34, foi costurado à base de muitas mudanças: de carreira, de cidade e de perspectivas sobre pressa e perfeccionismo.
ELA APROVEITOU A DEMISSÃO E A INSATISFAÇÃO COM A CARREIRA PARA FAZER UM SABÁTICO NA BAHIA
Formada em publicidade e propaganda, Dani atuava na área de atendimento em agências em São Paulo, onde nasceu, até ser demitida em um corte de funcionários na empresa onde estava há apenas quatro meses. Ela já vinha se questionando há um tempo sobre sua trajetória profissional e aproveitou a demissão para mudar.
“Eu estava há um ano e meio sem tirar férias direito e quis aproveitar para viajar. Mas tinha que ser algo econômico. Foi aí que descobri o Worldpackers, um site que ajuda viajantes a trocar trabalho por acomodação”
Assim, embarcou, em janeiro 2017, para o distrito de Arraial d’Ajuda, em Porto Seguro, na Bahia, só com a passagem de ida — o que conseguiu pagar na época com suas milhas. “Minha mãe ficou preocupada, mas eu falei que iria voltar, que seria apenas um sabático, coisa rápida…”
Lá, ela começou a trabalhar num hostel em troca da hospedagem, cuidando desde o atendimento na recepção até a limpeza dos quartos.
“Fui desacelerando e gostando, porque as coisas acontecem aqui sem pressa. Foi um baque para mim, mas quando olho para tudo o que vivi, vejo que foi muito transformador. Eu nunca tinha saído da casa dos meu pais e fui explorar mais o mundo, andar com minhas próprias pernas, pagar minhas contas”
Três meses depois, Dani chegou a receber propostas de emprego para voltar à capital paulista, mas estava gostando tanto da nova morada e do ritmo que decidiu ficar mesmo sem trabalhar na sua área de formação.
A VONTADE DE FAZER UM PRESENTE PARA A SOGRA MOTIVOU DANI A DESCOBRIR O UNIVERSO DO BORDADO NO PAPEL
Quando decidiu ficar de vez na Bahia, ela foi em busca de um trabalho remunerado e começou a atuar como recepcionista de um hotel. Depois, foi promovida para a área de reservas, até surgir novamente uma oportunidade em uma agência.
Dani se readaptou à sua área e chegou inclusive a trabalhar em uma segunda agência. Foi nesta época, em março de 2018, que o bordado no papel surgiu na vida dela, a partir da proximidade da visita de sua sogra, da avó e de uma tia do namorado, Pedro, que conheceu cinco meses depois de sua chegada à Bahia. Ele, natural de São José dos Campos (SP), também estava mochilando e resolveu ficar trabalhando por lá com hotelaria, sua área de atuação.
“Amo presentear e queria fazer algo com minhas própria mãos para dar a minha sogra. Quando era adolescente, já fazia porta-joias, pulseiras e outras coisinhas para dar às amigas. Quando a família do Pedro veio, achei que era um momento de resgatar essa habilidade.”
Buscando o que poderia fazer, Dani se deparou no Pinterest com uma capa de caderno bordada e ficou curiosa em relação à técnica.
“Eu nunca tinha bordado na vida, não sabia nem pregar um botão, mas aquilo ficou na minha cabeça e no dia seguinte comprei os materiais que imaginei que iria usar”
Ela começou a fazer os primeiros furos no papel, passar a linha e viu que dava certo. Decidiu, então, pegar a foto de um ponto turístico do distrito, a Igreja de Nossa Senhora do Arraial d’Ajuda, copiou apenas seu contorno e o traço no papel (um dos pilares do que é hoje seu método de ensino) e começou a bordar.
“Levou um tempão para confeccionar, porque foi tudo na base da experimentação, eu não tinha técnica ainda”, diz. Acabou fazendo três, presenteando ainda a tia e a avó de Pedro. O processo de encadernação ficou por conta do namorado. “Até hoje olho para esse caderno, que minha sogra ainda tem, e fico emocionada, porque vejo como uma ideia completamente despretensiosa se transformou”, diz Dani.
DE HOBBY E RENDA EXTRA AO NEGÓCIO PRÓPRIO: ASSIM NASCEU A PARAFINA PAPELARIA
As presenteadas adoraram o resultado. Pedro, também, e sugeriu a Dani fazer outros cadernos, já que havia sobrado material (ela conta que, na época, gastou menos de 50 reais nesta compra).
“Ele deu a ideia de levar para a recepção do hotel onde trabalhava e oferecer aos hóspedes no check in ou check out. Depois de um tempo, falou: “Vendi um caderno!”. Eu não acreditei. Aí, vendeu mais um. E a gente usou o dinheiro, 30 reais, para tomar açaí!”
Uma vez, uma hóspede pediu cinco caderninhos de uma vez. Pedro perguntou se Dani dava conta do recado e ela arriscou fazer. “Eu saía da agência, chegava em casa e me dedicava ao bordado no período da noite”, diz. “Era assim: o Pedro vendia no hotel, a gente oferecia para alguns amigos e eu postava no meu Instagram pessoal.”
Quando faltava algum material, eles iam repondo aos poucos, pontualmente. “Era algo que eu fazia para relaxar, um hobby. Mas depois que a gente viu que as pessoas estavam gostando, decidimos, em julho de 2018, criar um perfil no Instagram para divulgar, mas algo bem tímido, à pronta entrega, só para quem morava por aqui.”
Dani conta que, conforme ia fazendo os bordados, ficava mais habilidosa, rápida e ia desenvolvendo suas próprias técnicas. O casal decidiu então expor para venda os caderninhos em uma galeria, o Mercado das Artes, onde vários artesãos expunham seus trabalhos, pagando um aluguel de colaboração pelos boxes utilizados.
“Para nossa grande surpresa, foi um sucesso. A partir daí começamos a pensar no bordado de forma empreendedora, como uma renda extra”
Entre novembro e dezembro daquele ano, Pedro pediu demissão para se dedicar integralmente aos processos da loja e, pouco tempo depois, Dani foi demitida e mergulho de cabeça na empresa, que recebeu o nome de Parafina Papelaria “para despertar curiosidade”, já que o nome não remete ao bordado nem a materiais utilizados nesta técnica.
Aos poucos, o casal foi conquistando também cliente corporativos, que faziam pedidos personalizados em volume, entre 150 e 300 caderninhos. “Teve uma época que a gente imprimiu um mapa do Brasil e foi pintando para onde já tínhamos enviado encomendas — e acabamos marcando todos os estados.”
QUANDO A PANDEMIA CHEGOU, ELES DECIDIRAM PRODUZIR UM CURSO ONLINE PARA ENSINAR OUTRAS PESSOAS A BORDAR NO PAPEL
Com a crise sanitária e o fechamento das lojas na pandemia, parte da renda do casal foi comprometida. Nesta época, os dois já tinham deixado a galeria e passado a ocupar uma loja colaborativa (a Espaço 42, no centro de Arraial d’Ajuda, onde o casal vive até hoje), depois de, segundo Dani, investir menos de 1 mil reais para a pintura do local e a compra de prateleiras.
Para cortar gastos, muitos clientes corporativos e pessoas físicas também cancelaram pedidos que já estavam com a produção encaminhada…
“Ficamos uns três meses naquele limbo, na incerteza, vendo lives e produzindo coisas para a gente. Mas no final do ano, quando as lojas começaram reabrir, a loja colaborativa retornou, só que com pouco movimento”
Em 2021, ainda num ritmo de vendas lento, Dani começou a produzir mais conteúdo para o Instagram e percebeu que as pessoas tinham muitas dúvidas sobre a técnica do bordado no papel, desde como fazer o furo até que tipo de linha usar. “Naquela época, tínhamos uns 20 mil seguidores — hoje são mais de 105 mil — e comecei a perguntar se teriam interesse num curso online.”
Segundo Dani, ela e Pedro pesquisaram e não encontraram nenhum curso de bordado no país, muito menos online. Eles estruturaram a ideia, ela criou uma metodologia de ensino, chamada Ligando os Pontos e, em abril, o curso online foi lançado.
Com 15 módulos e seis bônus (atualmente, a 327 reais), as aulas apresentam desde a técnica em si, para quem nunca bordou antes, os pilares do método, os diferentes pontos, como fazer letras, teoria das cores, encadernação até como empreender nesta área (são 13 aulas só com essa temática).
E não são só capas de caderninhos que as alunas aprendem a fazer, mas etiquetas, marcadores de livros, fotos, pinturas, colagens ou pôsteres bordados, entre outros produtos. Elas também participam de encontros de tira-dúvidas quinzenais com Dani e uma oficina mensal, que funcionam como mentorias, além do grupo no Telegram.
Quem não deseja mergulhar tão a fundo no bordado no papel, mas deseja conhecer a técnica pode experimentar um minicurso online (47 reais) e, em poucas aulas — algo em torno de um fim de semana –, sair com um caderno bordado.
No Instagram, toda quinta-feira Dani faz uma live, a “Fofoca e Borda”, em que mostra passo a passo de projetos, de forma gratuita. O que é produzido para as redes, de forma geral, e nestas gravações costuma ser vendido no espaço da loja colaborativa que o casal ainda mantém e fica sob os cuidados de Pedro.
ELA APRENDEU QUE O PERFECCIONISMO ATRAPALHA E BUSCA ENSINAR ISSO A SUAS ALUNAS
Em seu método, Ligando os Pontos, Dani estabeleceu três pilares: contorno e traço, distância entre pontos e avesso imperfeito.
A base do contorno e traço nasceu no primeiro caderninho, quando adaptou a foto da igreja para o papel, copiando apenas o contorno e alguns traços. “Isso permite que as pessoas tenham autonomia para fazer qualquer desenho, criando seus próprios riscos.” Já o segundo pilar, distância entre pontos, tem a ver com a experiência prática dela de “rasgar muitos papeis e fazer muitos bordados tortos”.
Aceitar o terceiro pilar, por sua vez, permitiu que Dani persistisse na empreitada da Parafina. “É uma máxima entre muitas bordadeiras, principalmente as mais antigas e que bordam em tecido, de que você só é uma bordadeira boa se o seu avesso for perfeito”, diz.
“Isso caiu como um balde de água fria em mim, porque meu primeiro bordado tinha um avesso horroroso, mas a parte da frente estava bonita. Cansei de ver gente que pegava meus cadernos e olhava o avesso levantando a sobrancelha”
Ela chegou a pensar em desistir. “Ficava estudando como melhorar, perdia horas e chorava porque não conseguia. Foi um processo dolorido, mas entendi que o bordado livre, que eu aplico no papel, não segue pontos regulares, ou seja, não tem como o avesso ficar igual a parte da frente. Aceitei isso.”
Dani conta que esse pilar vem ajudando muitas alunas com personalidade mais perfeccionista a trabalhar esse ponto na vida. “A minha visão hoje do bordado no papel não se resume só à técnica, mas ao que desperta nas pessoas, o que o avesso diz sobre como buscam esconder seus medos e imperfeições… E também como coloca luz no que não acreditavam, já que várias alunas achavam que não conseguiriam fazer, que era preciso ter um dom, ser artista para bordar.”
ALÉM DE FUNCIONAR COMO RENDA EXTRA, O BORDADO TROUXE IMPACTOS POSITIVOS PARA A SAÚDE MENTAL DAS ALUNAS
Dani tem muitas alunas que já conseguem fazer uma renda com o bordado no papel, vendendo para empresas, pessoas físicas ou mesmo participando de feirinhas.
Para se ter uma ideia, ela aponta, no próprio site, que para fazer um caderno com a capa bordada (de coração) gasta-se menos de 5 reais — e é possível vendê-lo por 60. “Isso significa que você já consegue recuperar o dinheiro investido no minicurso, por exemplo, e vai sobrar para comprar mais material.”
Entre alunas que estão aproveitando essas dicas e vendendo suas produções. Dani cita Eliz, do Feito de Folhas, de São Paulo. “Ela comprou o curso quando abriu, em 2021. Hoje, se divide entre o trabalho e o bordado no papel e participou no ano passado da Pixel Show, uma feira criativa grande.”
Outras alunas mencionadas por Dani são Niceia, de Palmas, que empreende o Universo Por Um Fio, e Joyce, de Alagoas, que com a Linha no Papel participou recentemente de sua primeira feira. “As meninas vão motivando umas às outras e conseguem fazer sim uma renda extra com o bordado no papel.”
Dani inclusive costuma postar nas redes e no site as conquistas das alunas, que em algumas aulas já estão produzindo seus bordados. E não necessariamente para vender, mas para se “curar através da arte”. Ela compartilha um relato emocionante:
“Tem uma aluna que me relatou que enfrentava depressão há um tempo e tentou se suicidar… No hospital, lembrou que tinha visto meu curso e decidiu fazer as aulas. Aquilo me tocou porque percebi que de alguma forma eu podia transformar a vida daquela pessoa. E, hoje, ela empreende com isso e disse que voltou a ter alegria de viver ao bordar no papel”
Outra aluna, conta Dani, também sofria com uma depressão depois de tratar um câncer de mama. Segundo a empreendedora, ela usou o bordado como uma forma de terapia. “Ela me disse que bordou em cima do exame dela para ressignificar o que havia passado”, afirma.
Dani celebra o efeito positivo que a atividade traz para as pessoas, mesmo aquelas que encaram o bordado apenas como um hobby:
“Tem mães que estão bordando com os filhos, porque é uma atividade para várias idades”, diz. “Tenho alunos de 7 até 80 anos. E quando descubro crianças embarcando nisso, fico superfeliz de ver uma nova geração de bordadeiras vindo com força por aí.”
Fonte: projetodraft