Presença constante em fantasias e maquiagem de carnaval, as partículas de glitter podem comprometer o crescimento de organismos que constituem a base de ecossistemas aquáticos, como as cianobactérias, que têm papel fundamental para os ciclos biogeoquímicos da água e do solo e na alimentação de outros organismos. A conclusão é de um estudo da Universidade de São Paulo (USP) publicado recentemente na revista Aquatic Toxicology.
Também conhecidas como purpurina, as partículas de glitter são microplásticos com menos de 5 milímetros. Seu tamanho reduzido impede que sejam filtradas pela rede de tratamento de esgoto. Portanto, quando os foliões tomam banho, elas escorrem diretamente pelo ralo e se espalham por praias, sedimentos, florestas, lagos e oceanos. Estima-se que, nos últimos anos, mais de 8 milhões de toneladas do material foram lançados no oceano, de acordo com a literatura científica atual.
Por não ser biodegradável, o glitter entra em contato com os organismos aquáticos e afeta todo o ecossistema à sua volta. Essa exposição pode acontecer de diversas formas, como ingestão, contato com subprodutos tóxicos ou danos e ferimentos causados pelas bordas afiadas das partículas. Além disso, sua forma, tamanho e propriedades físico-químicas dificultam a medição precisa dos níveis de contaminação da água.
Em estudo conduzido no Centro de Energia Nuclear na Agricultura da USP (Cena-USP) com apoio da FAPESP (projetos 16/14227-5 e 18/24049-2), pesquisadores avaliaram os efeitos de cinco concentrações de partículas de purpurina não biodegradáveis em duas linhagens de cianobactérias, Microcystis aeruginosa CENA508 (unicelular) e Nodularia spumigena CENA596 (filamentosa), que são responsáveis por formações de florações em corpos d’água. Ambas fazem parte da coleção de quase 800 linhagens coletadas no país pelo grupo Cyanos. Durante 21 dias, a taxa de crescimento celular das cianobactérias foi medida a cada três dias por meio de espectrofotometria (medição de densidade óptica).
“Conseguimos observar que as doses crescentes de glitter aumentam o biovolume das células de cianobactérias, fazendo com que passem por processos de estresse que comprometem até mesmo a fotossíntese, o que destaca a toxicidade pouco explorada do glitter em microrganismos”, afirma Mauricio Junior Machado, autor do estudo e pesquisador do Laboratório de Biologia Celular e Molecular do Cena-USP. “Vale lembrar que, se algo afeta as cianobactérias diretamente, então indiretamente afetará outros organismos do mesmo ambiente.”
Os resultados sugerem que concentrações ambientais de glitter semelhantes à maior dosagem testada (>200 mg de glitter por litro de água) podem influenciar negativamente organismos suscetíveis dos ecossistemas aquáticos. O efeito mais evidente foi visto em Microcystis aeruginosa, que apresentou mudanças na taxa de crescimento durante todo o período de experiência: um pico de crescimento foi registrado no tratamento com glitter de 50 mg por litro de água, enquanto o menor crescimento foi registrado com 200 mg por litro de água. Em Nodularia spumigena, o maior crescimento foi medido em 100 mg de glitter por litro de água, com efeitos negativos observados em concentrações de purpurina acima de 137,5 mg por litro de água, afetando a densidade celular sem recuperação. A diferença na taxa de crescimento só aconteceu no 21º dia do experimento.
Não houve diferença significativa entre as concentrações de clorofila e de carotenoides totais. Entretanto, em valores absolutos, ambas as linhagens apresentaram redução de carotenoides nos grupos expostos a 200 e 350 mg de glitter por litro de água, e uma variação na fluorescência da clorofila foi observada em Nodularia spumigena para células expostas a 350 mg por litro de água.
CARNAVAL SUSTENTÁVEL
Os pesquisadores acreditam que o estudo ofereça embasamento para que o poder público e a população repensem as comemorações da festa mais popular do país e estimule um consumo mais consciente de itens derivados de plástico.
“O glitter foi criado para ser usado em festividades e, nesses momentos, as pessoas acabam não pensando na problemática criada para o meio ambiente”, acredita Marli de Fátima Fiore, pesquisadora do Cena-USP e coordenadora do trabalho. “Mas é preciso lembrar que esses microplásticos comprometem e contaminam ecossistemas tanto marinhos quanto de água doce, que são extremamente importantes para nossa vida, e pensar em campanhas para que eles sejam evitados ao máximo.”
Os pesquisadores pretendem agora realizar os mesmos testes em mais linhagens de cianobactérias e também analisar o glitter dito biodegradável para verificar se esse material realmente não gera problemas para os organismos (como, por exemplo, prejuízos decorrentes de possíveis pigmentos com metais na composição).
Texto: Julia Moióli | Agência FAPESP