As neurotecnologias – dispositivos que interagem diretamente com o cérebro ou com o sistema nervoso – já foram consideradas coisa de ficção científica. Não são mais. Várias empresas estão tentando desenvolver interfaces cérebro-computador, ou BCIs (na sigla em inglês), na esperança de ajudar pacientes com paralisia grave ou outros distúrbios neurológicos.
A Neuralink, empresa de Elon Musk, por exemplo, recebeu recentemente a aprovação da Food and Drug Administration para iniciar os testes em humanos de um minúsculo implante cerebral capaz de se comunicar com computadores.
Há também neurotecnologias menos invasivas, como fones de ouvido EEG que detectam a atividade elétrica dentro do cérebro do usuário, abrangendo uma ampla gama de aplicações, desde entretenimento e bem-estar até educação e trabalho.
De acordo com um relatório das Nações Unidas, a pesquisa e as patentes de neurotecnologia aumentaram 20 vezes nas últimas duas décadas. E os dispositivos estão ficando mais potentes. As BCIs mais recentes, por exemplo, têm o potencial de coletar dados do cérebro e do sistema nervoso mais diretamente, com maior resolução, em maior quantidade e de forma mais abrangente.
Entretanto, esses aprimoramentos também levantam preocupações sobre privacidade e autonomia. A quem pertencem os dados gerados e quem deve ter acesso a eles? Esse tipo de dispositivo pode ameaçar a capacidade dos indivíduos de tomar decisões independentes?
Em julho, a UNESCO realizou uma conferência sobre a ética da neurotecnologia, pedindo uma diretriz para proteger os direitos humanos. Alguns críticos chegaram a argumentar que a sociedade deveria reconhecer uma nova categoria de direitos humanos, os ““neurorights“. Em 2021, o Chile se tornou o primeiro país cuja constituição aborda preocupações relacionadas à neurotecnologia.
LENDO PENSAMENTOS
As preocupações estão centradas na ideia de que um observador pode “ler” os pensamentos e sentimentos de uma pessoa apenas com base nos registros de sua atividade cerebral. É verdade que algumas neurotecnologias podem registrar a atividade cerebral com grande especificidade.
Os pesquisadores podem fazer inferências sobre fenômenos mentais e interpretar o comportamento com base nessas informações. Entretanto, “ler” a atividade cerebral registrada não é simples. Antes de o olho humano receber o resultado, os dados já passaram por filtros e algoritmos.
Devido a essas complexidades, meu colega Daniel Susser e eu escrevemos um artigo recente no American Journal of Bioethics – Neuroscience questionando se algumas preocupações com relação à privacidade poderiam estar equivocadas.
As neurotecnologias realmente suscitam preocupações com a privacidade, mas nós argumentamos que os riscos são semelhantes aos das tecnologias familiares de coleta de dados, como a vigilância online cotidiana – o tipo que a maioria das pessoas experimenta por meio de navegadores de internet e publicidade digital, ou quando fazem uso de dispositivos vestíveis. Até mesmo os históricos de navegadores em dispositivos pessoais são capazes de revelar informações altamente confidenciais.
Entretanto, isso não quer dizer que não haja motivo para preocupação. Os pesquisadores estão explorando novas possibilidades em que vários sensores – como faixas de cabeça, sensores de pulso e de ambiente – podem ser usados para capturar vários tipos de dados comportamentais e ambientais. A inteligência artificial poderia ser usada para combinar esses dados em interpretações mais sofisticadas.
LIBERDADE COGINITIVA?
Outro debate instigante sobre a neurotecnologia trata da liberdade cognitiva. De acordo com o Center for Cognitive Liberty & Ethics, o termo refere-se ao “direito de cada indivíduo de pensar de forma independente e autônoma, de usar todo o poder de sua mente e de se engajar em vários tipos de pensamento”.
Mais recentemente, outros pesquisadores retomaram essa ideia. Os defensores da liberdade cognitiva defendem amplamente a necessidade de proteger as pessoas de terem seus processos mentais manipulados ou monitorados sem o seu consentimento.
Eles argumentam que pode ser necessária uma maior regulamentação da neurotecnologia para proteger a liberdade dos indivíduos de determinar seus próprios pensamentos internos e controlar suas próprias funções mentais.
No entanto, em nossos estudos, defendemos que a forma como a liberdade cognitiva é discutida nesses debates vê cada indivíduo como um agente isolado, negligenciando os aspectos relacionais de quem somos e de como pensamos. Os pensamentos não surgem simplesmente do nada na cabeça de alguém.
Por exemplo, parte do meu processo mental enquanto escrevo este artigo é lembrar e refletir sobre pesquisas de colegas e minhas próprias experiências. Então, até que ponto nossos pensamentos são exclusivamente nossos? Até que ponto meus processos mentais já estão sendo manipulados por outras influências? E, tendo isso em mente, como as sociedades devem proteger a privacidade e a liberdade?
Acredito que reconhecer a extensão em que nossos pensamentos já são moldados e monitorados por diferentes forças pode ajudar a definir prioridades conforme as neurotecnologias e a IA se tornam mais difundidas.
Olhar além das novas tecnologias para fortalecer as leis de privacidade atuais pode proporcionar uma visão mais abrangente das muitas ameaças à privacidade e das liberdades que precisam ser defendidas.
Este artigo foi originalmente publicado no The Conversation e reproduzido em acordo com a licença Creative Commons. Leia o artigo original.
Texto: Laura Y. Cabrera