Mais expostas às consequências das mudanças climáticas, as mulheres estão pouco representadas no setor de energia, segmento que ocupa a linha de fogo no enfrentamento às emissões de gases de efeito estufa, vilões do aquecimento global. Mas a transição energética, que demanda a redução do uso de combustíveis fósseis e expansão de fontes renováveis, deve acelerar não só o desenvolvimento de energias menos poluentes, mas também expandir as oportunidades para as mulheres. Globalmente, elas representam 32% da força de trabalho em energia renovável, em comparação com 22% na indústria de petróleo e gás.
De acordo com o relatório World Energy Transitions Outlook 2022 da Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA), até 2030 haverá 139 milhões de empregos no setor de energia em todo o mundo. Desses, 38,2 milhões estarão em energia renovável e 74,2 milhões em outros setores relacionados à transição energética. “Isso oferece uma chance de requalificar e aprimorar uma força de trabalho de transição variada e equilibrada. Aproveitar a participação das mulheres como agentes de mudança pode encorajar, influenciar e acelerar a transformação energética”, avalia a agência.
Apesar da perspectiva positiva, as mulheres ainda ficam atrás dos homens em cargos de liderança e técnicos no setor de energia renovável, diferença alimentada pelo acesso desigual à educação, o acesso limitado às habilidades técnicas e oportunidades de treinamento, bem como políticas e práticas injustas das empresas, entre outros fatores. Mas isso está mudando. No Brasil, fabricantes e redes profissionais estão apoiando as carreiras das mulheres para reduzir a lacuna de gênero no setor.
Com mais de 20 anos de atuação no setor de renováveis, a AES Brasil é a primeira companhia brasileira a ter um complexo de geração de energia eólica totalmente operada por mulheres, situado entre os municípios de Tucano, Biritinga e Araci, no interior da Bahia e inaugurado no começo deste ano. Para compor a força de trabalho feminina formada por três dezenas de funcionárias, a empresa atuou em parceria com Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) da Bahia na capacitação das profissionais.
Complexo eólico na Bahia é operado exclusivamente por força de trabalho feminina. — Foto: Divulgação
A experiência será replicada para o complexo eólico Cajuína, no Rio Grande do Norte, que deve começar a operar este ano. Mais de 70 mulheres de diferentes formações, como eletrotécnica, mecânica e segurança do trabalho, e vindas de 18 municípios do estado, participaram da especialização técnica com foco em manutenção e operação de parques eólicos oferecida pela AES e o Senai-RN. “Temos notado um avanço dos cursos de especialização e de formação nessa área, que estimula inclusive a transição de carreira para muitas mulheres, com um olhar mais sistêmico”, afirma Andrea Santoro, gerente de sustentabilidade da AES, empresa que intensificou seu programa de equidade, diversidade e inclusão nos últimos três anos.
“Mesmo oferecendo o primeiro curso técnico voltado para mulheres com foco em eólicas com nosso programa em Tucano, na Bahia, nós nos surpreendemos em ver mulheres muito bem preparadas, com competência técnica, e que estavam apenas buscando uma oportunidade, uma porta se abrindo para elas entrarem nesse mercado”, avalia. Além da capacitação de mulheres para atuar no setor, a empresa fomenta projetos sociais voltados para a segurança hídrica e inclusão produtiva na área sob influência dos complexos.
Em parceria com o SENAI, a AES Brasil ofereceu curso de capacitação para mulheres. — Foto: Divulgação
As investidas integram os esforços ESG da empresa, que abrangem diversidade, equidade e inclusão, entre outras iniciativas, aumentando inclusive a participação de mulheres em cargos de liderança. Do quadro geral de colaboradores da empresa, atualmente, 30% são de mulheres. Em 2021, o número de mulheres na AES Brasil avançou 32% no corpo geral da companhia, que se impôs a meta de ter 30% dos cargos de alta liderança ocupados por mulheres até 2025, taxa atualmente em 25%. Para a executiva, a maior presença feminina só é atingida a partir de esforços para a valorização de talentos tanto em novas contratações quanto no pipeline de sucessão.
“Precisamos olhar para a questão do ‘viés inconsciente’, trabalhando com os gestores e as áreas de recrutamento para que as seleções sejam feitas de forma ‘consciente’ e não olhando para gênero, idade ou outra afinidade. Por outro lado, também precisamos olhar para a questão educacional e os cursos tradicionalmente procurados por homens. O setor elétrico é predominantemente masculino porque está ligado à engenharia, área ainda dominada por homens. Cabe às empresas que têm poder de contratação garantir que seus processos seletivos sejam inclusivos. E, acima de tudo, garantir que a inclusão faça parte da cultura corporativa”.
Rede de apoio
Jovem profissional vistoria placas fotovoltaicas. — Foto: Divulgação/IRENA
Embora as mulheres constituam aproximadamente um terço da força de trabalho total na indústria de geração renovável, é no setor de energia solar fotovoltaica que elas marcam maior presença, com uma participação de 40%, segundo relatório da Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA). É quase o dobro da proporção de mulheres empregadas na indústria eólica (21%). A maioria delas (58%) atua em funções administrativas.
O relatório destaca a necessidade de igualdade de oportunidades para mulheres em cargos técnicos em ciência, tecnologia, engenharia e matemática (área conhecida pela sigla STEM) e em outras frentes profissionais, onde atualmente elas detêm 38% de participação. Além disso, há um amplo espaço para as mulheres assumirem mais cargos de tomada de decisão, já que atualmente ocupam 30% dos cargos gerenciais e apenas 13% dos cargos de gerenciamento sênior na indústria fotovoltaica.
Representantes da Rede Mesol no Congresso Brasileiro de Energia Solar de 2022. — Foto: Acervo pessoal
Atenta à necessidade de desenvolver essa área de forma consistente e enfrentar a desigualdade de gênero, garantindo maior inserção feminina no mercado, a cientista ambiental Natália Chaves cofundou em 2019 a Rede de Mulheres na Energia Solar (MESol). A rede, que se baseia no networking e divulgação de oportunidades, é amparada pela Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha (AHK), onde Natália coordena o departamento de transição energética com foco em ESG. A plataforma aproxima mulheres que atuam no setor de energia, facilitando intercâmbio de ideias, o fortalecimento de conexões e a troca de conhecimento, incluindo a expertise alemã, uma das nações líderes em geração solar.
“A transição energética não se restringe aos insumos energéticos, mas é também uma oportunidade de transição de mentalidade, de atuação e promoção da diversidade”, afirma a especialista, lembrando que mais do que cumprir números referentes a metas de diversidade, é preciso que o tema faça parte de políticas públicas a fim de escalar oportunidades para as mulheres. Isso inclui desde políticas de inclusão até o acesso à programas de auxílio maternidade. “É de extrema importância que a gente modifique as estruturas para que as mulheres não tenham que escolher entre a atuação profissional ou a maternidade”, defende.
Natália Chaves, cofundadora da Rede MESol. — Foto: Acervo pessoal
Um das iniciativas mais bacanas ligadas à Rede, e feita em parceria com o Ministério de Educação, é a ação coletiva “Interligadas”, que oferece cursos de educação profissionalizante no mercado de trabalho das renováveis, facilitados por parcerias com escolas, como o Senai e institutos federais, e com organizações sociais e empresas comprometidas com ações afirmativas. O primeiro projeto da ação ocorreu em 2022, no Rio Grande do Norte, e reuniu 40 meninas do ensino médio de escolas públicas de Natal. “O Brasil possui um grande potencial para expansão de fontes renováveis e a possibilidade de estimular a afinidade das mulheres por áreas historicamente consideradas masculinas, aumentando a presença feminina em programas de formação e no mercado de trabalho”, pontua na Natália.
No Brasil, de acordo com dados do Conselho Federal e Engenharia e Agronomia (Confea), em 2018, existiam 1,4 milhão de profissionais ativos das áreas de engenharia, agronomia e geociências, englobando graduados e tecnólogos. Desse total, somente 14,5% são mulheres.
Participantes do projeto piloto do Interligadas do ensino médio de escolas públicas de Natal (RN) — Foto: Divulgação
Além do gênero
A transição energética também abre possibilidade para alavancar outros programas de inclusão, além das questão de gênero. Dados do Índice de Equidade Racial Empresarial (IERE) mostram que nas grandes empresas do Brasil, cerca de 30% dos funcionários são pessoas negras (19% homens e 12% mulheres), percentual inferior à participação negra na força de trabalho brasileira, de 53,5%.
A distribuição hierárquica nas empresas também é desigual. De acordo com o IERE, cargos mais baixos, como de menor aprendiz, estagiário e trainee, têm maior proporção de negros, com mais de 30%. Em níveis hierárquicos mais altos, a taxa cai consideravelmente, não chegando nem a um quinto das vagas de gerência e supervisão, enquanto nos níveis de diretoria e conselho administrativo respondem por menos de 7%, com homens representando 4,9% e mulheres 1,6%.
Engenheira de energia formada pela Universidade de Brasília, coordenadora de regulação e mercado de energia na Engie e professora de pós-graduação na FGV, Nayanne Brito, de 32 anos, se define como uma pessoa “sonhadora e otimista” que soube aproveitar as oportunidades entre a longa jornada da graduação na academia e o mercado de trabalho. Sua formação inclui um intercâmbio pelo extinto programa Ciência Sem Fronteiras em 2012 na França, onde participou de um projeto híbrido unindo energia solar, eólica e células a combustível, know-how inicial que ela carrega até hoje, na vida profissional madura, para os projetos de integração energética que realiza na Engie.
Foi buscando facilitar o caminho de outras mulheres negras no mercado de energia renovável e permitir a troca de experiência que ela criou um projeto para aumentar a presença feminina no setor de energia renovável. Assim nasceu o grupo de mentoria coletiva “Conversas Energéticas”, para auxiliar as mentorandas a conseguir o primeiro emprego na área. E nada melhor do que aprender com quem tem mais experiência e estrada.
Da esquerda para direita: Nayanne Brito, coordenadora de Regulação e Mercado da ENGIE Brasil e mentora do Conversas Energéticas; Monica Marcondes, mentora do Conversas Energéticas; Leiliane Ribeiro, mentorada do Conversas energéticas; e Priscila Duarte, mentorada do Conversas Energéticas em em evento em SP. — Foto: Acervo Pessoal
Em reuniões semanais, Nayanne convidava profissionais renomados do setor de energia para compartilhar experiências e o trabalho do dia a dia. Com isso as novas profissionais foram formando repertório, ganhando confiança e cultivando contatos de trabalho. Resultado: todas encontraram oportunidades na área, e a mentoria, ocorrida no ano passado, segue acompanhando o desenvolvimento das participantes, por meio de reuniões para refletir sobre como as carreiras delas evoluíram desde que participaram das Conversas Energéticas. “Hoje a conversa até mudou, como resultado do processo de evolução profissional. A gente fala muito sobre como pedir aumento, ter seu trabalho reconhecido ou até mesmo mudar de emprego”, conta.
Durante o percurso do projeto, as nove integrantes do grupo conseguiram muito além do primeiro emprego: foram convidadas para dar um workshop na Universidade de Coimbra, em Portugal, sobre mentoria, escreveram artigos em jornais de nicho no setor de energia renovável e construíram no Linkedin uma comunidade de network em volta desse tema. “Construir uma rede de apoio é algo muito poderoso”, diz Nayanne. Para ela, dar voz às profissionais mulheres em eventos e treinamentos desenvolvidos pelo setor energético é uma forma de potencializar e reconhecer a força feminina no mercado. “Mudança de cultura é fundamental”, acrescenta a especialista, que montou até uma lista com nomes de profissionais negras do setor de energia em um esforço de disseminar potenciais convidadas para eventos no setor energético.
Ações afirmativas não beneficiam apenas as mulheres, mas todo a cultura organizacional. Além disso, as empresas se abrem à oportunidade de criar um ambiente de trabalho melhor para todos os funcionários, já que foi comprovado que ter mais mulheres no local de trabalho melhora a cultura organizacional e promove o engajamento e maior cooperação entre os funcionários.
A iniciativa pessoal de Nayanne encontra ecos em ações da própria empresa onde ela atua. Para reduzir dificuldades na preparação da vida profissional e apoiar meninas e jovens mulheres na sua formação, a Engie, em parceria com o SENAI, já formou 45 mulheres na Bahia e 31 no Rio Grande do Norte, em cursos técnicos para atuação em usinas eólicas e solares. Para as mulheres em cursos de graduação ou recém-formadas em engenharias, a empresa também oferece experiências técnicas por meio de um curso online gratuito com vagas afirmativas, realizado pela parceira Head Energia, com foco nas áreas de Operação e Manutenção (O&M).
“Foram mais de 500 inscrições para as 100 vagas abertas, o que já fez a companhia estudar a abertura de mais turmas. O impacto é relevante no pilar atração, e nosso time de talentos já observa um maior interesse das mulheres pelas vagas abertas na companhia”, diz a Engie em nota. Entre outras iniciativas pela diversidade corporativa a empresa tem a meta de atingir 50% de mulheres em posições de liderança até 2030, contra os 24% registrados em 2019. A companhia, inclusive, é signatária do compromisso HeForShe, que traz, entre outras responsabilidades, o comprometimento de só participar de uma palestra se, a cada três palestrantes, ao menos uma for mulher. São tempos de mudanças há muito esperadas, agora é hora de acelerar o passo.
Fonte: Vanessa Oliveira/ Um Só Planeta