A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), recentemente, tornou pública a relação dos processos administrativos sancionatórios instaurados por suposta violação da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).
A medida chama a atenção, principalmente, por dois motivos. Primeiro, porque a divulgação da existência desses processos revela o uso, pela ANPD, de instrumentos regulatórios alternativos para impor aos agentes de tratamento um determinado comportamento. O regulador interessa-se por uma forma diferente de expressão estatal, distinta da ação tradicional consistente em “editar normas e sancionar os seus descumprimentos”.
Essa forma de ação, conhecida como soft law, não é necessariamente acompanhada de sanção, ao menos no senso jurídico do termo. Ao contrário, como os citados processos administrativos não estão concluídos, há que se considerar seriamente a hipótese de que as organizações constantes da lista publicada não sejam sequer sancionadas. Tal afirmação encontra-se, inclusive, mencionada pela ANPD em seu site: “As informações sobre quais sanções serão aplicadas para cada caso somente se tornarão públicas após a conclusão da investigação, que confirme que a conduta do agente resulta ou não em uma infração de fato, respeitados os direitos de ampla defesa e do contraditório”.
Não se pode negar, contudo, que dar publicidade à existência dos referidos processos sancionadores é uma ação capaz de influenciar o comportamento dos agentes de tratamento. Nenhuma organização tem interesse ou sente-se confortável em constar de semelhante lista. Tal fato pode gerar, no mínimo, uma crise de confiança dos clientes, usuários ou empregados das citadas organizações. Abruptamente, os setores da sociedade submetidos à regulação da ANPD – ou seja, todos – tomaram consciência do interesse em não constar nas listas futuras.
O segundo elemento que chama a atenção é a esmagadora predominância do setor público no rol de investigados. Das 8 entidades mencionadas, 7 pertencem ao setor público (87%). Não é possível ignorar esse fato.
Na ausência de informações sobre as prioridades da Coordenação-Geral de Fiscalização (CGF) em suas investigações, temos duas alternativas: ou a ANPD iniciou seus trabalhos investigatórios pelo setor público – hipótese plenamente plausível – ou o referido setor é, por enquanto, o grande vilão da LGPD.
A adequação de qualquer organização a uma lei nova e abrangente como a LGPD não é tarefa fácil. Ela implica na implementação de processos de mudanças organizacionais em praticamente todos os setores de uma organização: governança, organização, competências, contratos, tecnologia, incentivos, sistemas, processos, estratégia e – às vezes – até na mudança do modelo de negócios.
Com exceção de algumas sociedades públicas ou de economia mista, assim como raríssimos órgãos ou entidades públicas federais ou pertencentes aos estados mais ricos da federação, o setor público encontra-se em grande desvantagem em relação ao privado quanto aos recursos humanos, financeiros e organizacionais necessários a um processo de adequação à LGPD.
Com efeito, no setor público a alocação desses recursos às vezes independe da vontade e até mesmo da capacidade de decisão dos dirigentes daquelas entidades, posto que suas competências são limitadas pela estrutura administrativa piramidal ou pelo caráter temporário dos seus mandatos. Sem falar que a rigidez e a morosidade da administração vencem as mais bem intencionadas tentativa de mudança nos processos existentes.
Como se não bastasse, a necessária especificidade dos processos licitatórios dificulta a contratação de consultores e advogados competentes ao privilegiar – não sem justificativa – o preço como fator determinante para a contratação. A simples leitura de diversos editais de licitação para a contratação de serviços de adequação em LGPD deixa claro que os seus redatores não têm a menor ideia do escopo e dos limites de um projeto de adequação. E o que é pior, diversos editais com escopo gigantesco foram vencidos por empresas desconhecidas de reputação ignorada praticando um preço irrisório.
Nesse contexto, é plenamente compreensível que o setor público esteja em dificuldades em relação à LGPD. Isso não implica, portanto, que se deva esperar graça ou imunidade para o setor em razão de suas características intrínsecas. Pelo contrário, toda a sociedade anseia a que o Estado – única organização que, segundo Max Weber, detém “com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física” – imponha a si próprio as pesadas obrigações que impõe aos seus cidadãos e ao setor privado.
Aquele que gere os dados pessoais dos cidadãos deve fazê-lo com responsabilidade, de forma adequada e segundo as melhores práticas. Seguramente a ANPD não ignora as dificuldades do setor público em relação à LGPD, tampouco a fase de transição que estamos vivendo no Brasil em relação ao tema. Assim como fez prova de inteligência em sua ação regulatória, ela seguramente o fará para identificar os meios mais eficazes de influenciar o comportamento do setor público e gerar mudanças nesse ambiente complexo.
Texto: FERNANDO SANTIAGO