Ser gamer atualmente deixou de ser uma simples diversão da qual era dominada por homens, hoje em dia o mercado de jogos gira em torno de US $2,5 bi (cerca de R$ 13,5 bilhões segundo a cotação da moeda americana) ao ano no Brasil, e além de empregar homens e mulheres, também muda vidas. Apesar dessa grande evolução dos jogos e seu mercado, ainda há quem não consiga jogá-los e esse é o caso das pessoas PcD.
O jornalista Daniel Morbi e o criador de conteúdo “Machadinho” relataram que passam por muitas dificuldades por serem PcD no meio gamer — Foto: Reprodução/Instagram
Mais de 1 bilhão de ignorados
Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase 24% da população brasileira é PcD, ou seja, possui algum tipo de deficiência, que pode ser de nascimento ou adquirida durante a vida. Já esse número ao redor do mundo chega a marca de 1 bilhão de pessoas PcD de acordo com o relatório mundial sobre deficiência.
Apesar desse número ser grande, parece que ainda não é chamativo o suficiente para as grandes empresas que produzem periféricos e jogos de videogame, já que jogos com algum modo de acessibilidade ou periféricos voltados para pessoas com algum tipo de deficiência são praticamente inexistentes no mercado.
“Se o jogo for muito complexo e exigir que eu aperte muitos botões simultaneamente eu não consigo me adaptar.” — Foto: Reprodução/Elden Ring
Empresas vs. Comunidade
Daniel Morbi, 30 anos, é jornalista e tem uma má formação congênita dos membros superiores que dificulta o uso dos controles normais de console.
– Se o jogo for muito complexo e exigir que eu aperte muitos botões simultaneamente eu não consigo me adaptar. O jogo não oferece para mim uma possibilidade de adaptação, eu que tenho que me adaptar na maioria das vezes. Dentro das minhas limitações motoras, eu gostaria que os jogos e os sistemas fornecessem mapeamentos mais elaborados de botões. Seria uma solução mais barata e ainda bem que alguns poucos jogos recentes estão implementando – contou Daniel.
Ainda sobre outras soluções, o jornalista falou sobre como o modo fácil o ajuda.
– Se existe a opção de botar um modo fácil, por que não colocar? Se a equipe de desenvolvimento cria uma experiência, eles acreditam que essa experiência ainda é transmitida da mesma forma, por que não colocar? Você vai possibilitar que mais pessoas experimentem os jogos. Esse deveria ser o objetivo de qualquer equipe de desenvolvimento. O modo fácil já me ajudou diversas vezes por possibilitar que eu faça movimentos simultâneos que para mim seriam impossíveis no modo difícil – ressaltou o jornalista.
O Xbox Adaptive Controller, ou XAC, é o periférico da empresa que ao invés de contar com um joystick, há dois pads grandes e um direcional — Foto: Reprodução/XBOX
A Microsoft ganha destaque por trazer mais opções de acessibilidade quando o assunto é controles e jogos. Há controles adaptáveis para pessoas com deficiências físicas motoras e consequentemente seus jogos em sua maioria contam com mapeamentos de botões mais elaborados. O Xbox Adaptive Controller, ou XAC, é o periférico da empresa que ao invés de contar com um joystick, há dois pads grandes e um direcional, além de uma variedade típica de menus de navegação e botões.
Outra opção que vale o destaque é o modo “copilot”, onde é possível conectar dois controles para que você e outro jogador possam usá-los como se fossem um único controle.
Em 2022, a EA revelou em um comunicado oficial seu comprometimento com as pessoas PcD com o lançamento do “Compromisso de Patente de Acessibilidade”. Nesse comunicado a gigante dos jogos frisou que a equipe de acessibilidade está trabalhando para que os jogos produzidos pela empresa sejam mais inclusivos e que “eliminem o máximo possível de barreiras de acesso aos jogadores”.
A Nintendo também não fica de fora, apesar de contar com um controle de Switch que originalmente é separado em dois, a empresa japonesa utiliza bastante o controle de movimento em seus jogos, possibilitando assim que mais pessoas com deficiências diversas joguem os títulos.
– Principalmente para jogos que envolvem tiro e miras, o controle de movimento substituindo o analógico direito acabou me ajudando muito. Eu não precisei mais ficar indo do botão de gatilho para o analógico e etc – frisou Daniel.
A gigante japonesa foi a única que apresentou estações para pessoas cadeirantes durante a Brasil Game Show 2022, além de contar com uma mesa mais extensa e atendentes que eram intérpretes de libras.
Tendo isso em vista, indagamos algumas das principais empresas que produzem periféricos e jogos para sabermos os seus posicionamentos quanto a esses tópicos. A primeira delas foi a Capcom, onde indagamos mais sobre acessibilidade em seu estande na Brasil Game Show 2022 e também sobre seus planos futuros para inclusão de mecânicas de acessibilidade em seus jogos, e apesar da empresa ter nos respondido, não pôde comentar sobre o assunto no momento.
Apesar de serem extremamente solícitos e com um ótimo atendimento, o estande da PlayStation não apresentava uma estrutura acessível na BGS 2022 — Foto: Reprodução/Quero.Fotos
Procuramos saber o posicionamento da gigante PlayStation sobre a falta de acessibilidade em seu estande na BGS, a produção de periféricos voltados para pessoas PcD e também o desenvolvimento de mecânicas que possibilitem que essas pessoas joguem os jogos produzidos por eles, porém a empresa optou por não responder.
Uma das empresas de periféricos bastante ativa no Brasil é a HyperX e o ge foi atrás de representantes da organização para saber sobre o desenvolvimento de dispositivos voltados para essas pessoas, mas a empresa também não deu um posicionamento.
O assunto ainda piora quando falamos de eventos, a Brasil Game Show também não fica de fora quando o assunto é falta de acessibilidade. Apesar do evento contar com o apoio da instituição para pessoas com deficiências, Casas André Luiz, a equipe do evento apresentou um grande despreparo na edição de 2022 onde membros da equipe de assessoria não sabiam informar sobre o transporte para cadeirantes.
Apesar de serem extremamente solícitos e com um ótimo atendimento, o evento em si não apresentava uma estrutura acessível dentro do local.
– Eu ouvia que a pessoa não sabia sobre a existência do transporte para pessoas PcD, ou dizia que ele não estava funcionando. Ouvi até mesmo que tinha que solicitar o transporte com antecedência – revelou Daniel.
O jornalista também frisou que sentiu falta de preparo por parte da equipe e quanto ao conhecimento de como tratar as pessoas PcD.
– Minha sorte é que eu consegui informações específicas e confiáveis por ser jornalista. Por ser credenciado consegui falar diretamente com o Marcelo (fundador da BGS) que me ajudou rapidamente – disse.
Outro problema recorrente presente no evento é a falta de estrutura para pessoas PcD nos estandes, onde as áreas VIP e de entrevistas em sua maioria ficam em locais que são acessíveis apenas subindo escadas — Foto: Reprodução/Thegayoski
Outro problema recorrente presente no evento é a falta de estrutura para pessoas PcD nos estandes, onde as áreas VIP e de entrevistas em sua maioria ficam em locais que são acessíveis apenas subindo escadas. E como se esse problema já não bastasse, as empresas colocam cabos muito curtos em suas estações de jogos, o que prejudica pessoas com má formação congênita dos membros superiores para testá-los.
– Em alguns estandes, a equipe e o estande em si não estavam preparados para receber pessoas PcD. Eu fui fazer um hands on de PC e ficou ocorreu um constrangimento pelas duas partes. Eu não consegui jogar direito esse jogo, mas ao mesmo tempo eles não tinham como fornecer uma alternativa ali na hora – frisou Daniel.
Gabriel Machado Cabral, 22 anos, atualmente é conhecido como “Machadinho” e produz conteúdo para a internet realizando streams de jogos nas principais plataformas. Machadinho tem uma deficiência chamada atrofia muscular espinhal e também já teve experiências não muito positivas no meio gamer.
– Eu passei e ainda passo por problemas relacionados a acessibilidade, falta de sinalização, falta de comunicação sobre acessibilidade. Já trabalhei em estandes que sabiam que iriam receber um PcD e não tinham uma rampa de acesso. Isso é bem chato – disse Gabriel Machado.
Quando indagado sobre a falta de preparo das empresas que produzem periféricos, Machadinho disse que existem alguns periféricos que são bem democráticos, como os que são usados com a boca e ativados através do sopro, mas ainda são poucos.
– Os periféricos que temos hoje em dia não são bem adaptados. As coisas têm melhorado bastante com o tempo. É tudo uma questão de dar visibilidade para a comunidade PCD que as inovações que facilitam a nossa vida vão surgir – finalizou o criador de conteúdo.
AbleGamers Brasil é a primeira afiliada da AbleGamers fora dos EUA e a primeira ONG do Brasil voltada para pessoas com deficiência no mundo dos videogames — Foto: Reprodução/AbleGamers Brasil
A comunidade se ajuda
Se as principais empresas não se preocupam ou demonstram interesse em incluir essas pessoas, há quem faça, e esse é o caso da organização chamada AbleGamersBrasil, a primeira afiliada da AbleGamers fora dos EUA e a primeira ONG do Brasil voltada para pessoas com deficiência no mundo dos videogames.
Um dos trabalhos da ONG é ajudar pessoas orientando-as em como encontrar a solução ideal, fabricando ou adquirindo os acessórios necessários e doando os controles para quem precisa. Este trabalho é muito difícil por conta de ser algo customizado, único para cada pessoa. O Brasil é muito carente de equipamentos de games para PcD e tudo precisa ser importado ou criado de forma artesanal aqui no Brasil.
– A disponibilidade de “soluções prontas” é escassa e cara. Para se ter uma ideia, um controle Quadstick, criado para que pessoas paraplégicas possam jogar, chega no Brasil custando cerca de R$ 6 mil, considerando todos os custos de importação. Um simples botão a ser utilizado como acessório do controle adaptável de Xbox chega a custar até R$ 300 para um único botão! – revelou Christian, atual diretor da AbleGamersBrasil.https://d-30445266822618514336.ampproject.net/2301261900000/frame.html
Muitas empresas vêm ajudando a AbleGamers Brasil em sua missão de combater o isolamento social, promover comunidades inclusivas e melhorar a qualidade de vida de pessoas com deficiências. Dentre elas, podemos destacar Microsoft, Ubisoft Brasil, Dell (com Team Liquid e Alienware), WB Games e Furia que apoiam ativamente a causa.
A AbleGamers também é responsável por criar a APX (Accessible Player Experience), uma técnica de desenvolvimento de acessibilidade em jogos. Além do material disponível gratuitamente no site, ela ainda dá cursos de formação em APX com certificação com validade reconhecida internacionalmente.
Ainda em solo nacional, um outro projeto que ganhou destaque recentemente é a Westcade Games, que produz periféricos independentemente de controles adaptáveis.
Fora do mercado nacional a empresa Hori produz um controle adaptável para o Nintendo Switch, esse periférico é bem similar em aparência aos arcades e conta com todos os botões do controle do Switch distribuídos na “mesa”.
Outro projeto que ganhou destaque nacional e internacional foi a franquia brasileira de audiogames de suspense/terror para computador BREU — Foto: Reprodução/BREU
Outro projeto que ganhou destaque nacional e internacional foi a franquia brasileira de audiogames de suspense/terror para computador BREU. O jogo BREU: Ataque das Sombras que acompanha um jornalista cego investigando o desaparecimento de seu avô, contemplado pelo Rumos Itaú Cultural, tem proposta inclusiva e foi pensado para usuários com algum grau de deficiência visual. Produzido pela Team Zeroth em parceria com VAZ Soundworks, o jogo tem todas as orientações realizadas por meio de recursos sonoros, ou seja, é exclusivamente por meio do som que os jogadores conseguem saber o que está acontecendo, o que devem fazer e para onde ir.
Fonte: GE