quarta-feira,27 novembro, 2024

“Não há diferença entre realidade física e virtual. Quem garante que já não estamos vivendo no metaverso?”

1. Realidade virtual é realidade; o que acontece no mundo virtual é real
2. A vida nos mundos virtuais pode ser tão plena quanto a vida no mundo real
3. O mundo em que estamos vivendo hoje pode ser uma simulação virtual

Com essas três afirmações, o filósofo, cientista e escritor australiano David Chalmers, 55 anos, provocou um tsunami no mundo da tecnologia, gerando reflexões totalmente novas sobre o que significa o metaverso e como devemos (ou não) estruturar esse novo mundo. As frases polêmicas estão no livro Reality+, fenômeno literário de 2022 nos Estados Unidos, ainda inédito no Brasil. O título é uma alusão a múltiplas realidades, todas igualmente válidas na opinião de Chalmers.

Um dos mais conceituados filósofos do século 21, Chalmers ficou conhecido no meio pelos seus estudos sobre a consciência, descritos no livro The Conscious Mind e compartilhados no Centro da Mente, Cérebro e Consciência da New York University, onde também ensina Neurociência. Mas sua popularidade cresceu quando ele passou a usar o pensamento filosófico para jogar luz sobre a tecnologia – algo que ele chama carinhosamente de tecnofilosofia.

“É uma via de mão dupla. Com as ferramentas da filosofia, consigo enxergar as novas tecnologias com um olhar totalmente novo”, diz Chalmers, em entrevista a Época NEGÓCIOS. Ao mesmo tempo, a tecnologia fornece ao autor instrumentos para pensar em temas primordiais. “O que os mundos virtuais dizem sobre a nossa realidade? De que maneira os sistemas de inteligência virtual iluminam a mente humana? Essa interação é fundamental para mim.”

Casado com a brasileira Claudia Passos, também filósofa, Chalmers bate ponto no Rio todos os anos, para visitar a família – a primeira vez foi em 2013, quando participou de uma conferência sobre consciência e fenômenos conceituais na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre seus planos está um novo livro, dessa vez sobre inteligência artificial e a consciência humana. “Mas levei cinco anos para escrever o último, então melhor não falar em datas”, diz. Confira a seguir os principais trechos da entrevista:

Vamos falar sobre seu livro Reality+. Um dos princípios mais polêmicos do livro é o de que você pode viver uma vida plena no mundo virtual. Como isso seria possível?
Muitas pessoas acham que a realidade virtual é, por natureza, uma realidade falsa ou imaginária – algo como uma realidade de segunda classe. Talvez seja uma alucinação, talvez seja uma ilusão. Portanto, uma das coisas mais importantes que faço nesse livro é argumentar que realidade virtual é realidade genuína. O que acontece dentro da realidade virtual não precisa ser falso ou de mentira. Relacionamentos nascem na realidade virtual. Um filme recente mostra a história de dois amigos que, em certo ponto, percebem que são personagens em um game. E um deles pergunta: “Isso quer dizer que nada disso é real?” E o outro responde: “Eu estou sentado aqui com o meu melhor amigo, ajudando-o a superar um momento difícil. Se isso não é real, eu não sei o que é.” Acho que essa é a atitude correta diante da realidade virtual. Veja bem, até o momento a realidade virtual é bastante primitiva. Mas a tecnologia está se desenvolvendo rapidamente. Em 10 ou 20 anos, quando tivermos mundos virtuais que replicam com perfeição o mundo original, não vejo por que não poderíamos ter vidas significativas ali.

Muitos acreditam que o mundo virtual é uma fuga do real. Seria como desistir de viver e de enfrentar os problemas do dia a dia.
Bem, não acho que ninguém deva ser obrigado a viver em um mundo virtual. Se você prefere o físico, ótimo. Mas não acho que realidade virtual é sinônimo de escapismo. Quando os europeus se mudaram para as Américas, ou quando habitantes da Ásia foram para a Austrália começar uma vida nova, isso não era escapismo. Eles estavam indo para um novo local onde poderiam construir novas vidas, comunidades e relacionamentos. Eu diria que, para muitas pessoas, a realidade virtual pode ser a mesma coisa. É claro que, nesse momento, ninguém vai deixar o mundo físico completamente. Vamos manter um pé firme por aqui. Mas podemos também abraçar essas novas comunidades e interações. Para alguns, a RV pode ser só uma fantasia escapista. Mas acho que, para muitas pessoas, é mais profundo do que isso. Especialmente para indivíduos para quem o mundo físico não é tão bacana assim. Pessoas com deficiências ou mais velhas, ou ainda em áreas remotas, sem acesso à realidade física que outras pessoas têm. Dessa maneira, elas podem encontrar novas maneiras de viver.

Como criar regras para esse novo mundo?
A maioria das pessoas que usa realidade virtual hoje é governada pelas mesmas leis do mundo físico. Por exemplo, se eu roubo algo de você no mundo virtual, isso pode ser visto como um ato criminoso. Já houve um caso assim em que a pessoa foi processada, na Holanda. Os acusados alegaram que não era um roubo real, já que um objeto digital havia sido roubado. Mas o juiz decidiu que era um roubo real, sim, e deveria ir a julgamento. Também já houve denúncias de abuso sexual, e isso foi tratado de maneira muito séria. De maneira geral, interações entre pessoas no mundo virtual deveriam seguir as mesmas regras do mundo físico.

O filósofo David Chalmers não vê distinção entre o mundo real e virtual (Foto: Divulgação)
O filósofo David Chalmers não vê distinção entre o mundo real e virtual (Foto: Divulgação)

Outra afirmação polêmica do livro é que nós podemos estar vivendo em uma simulação virtual, como no filme Matrix. Se fosse assim, não estaríamos vendo o mesmo gato passando três vezes na mesma rua escura?
Não se for uma boa simulação! Veja bem, não estou dizendo que estamos vivendo em um mundo virtual. Só disse que a possibilidade existe e não pode ser negada. Com a velocidade que a tecnologia está se desenvolvendo, não vai demorar muito para que tenhamos réplicas perfeitas de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Tenho certeza de que muitas simulações da Terra serão feitas no futuro. Minha pergunta é e se isso já aconteceu. Quem garante que não estamos numa dessas simulações?

Se isso é só uma simulação, podia ser um pouco melhor, não? Sem tanta desigualdade, sem fome, guerras e pandemias …
Essa é uma boa pergunta. Tudo vai depender, claro, das motivações dos simuladores. Esse é o mesmo tipo de pergunta que as pessoas fazem sobre Deus. Ele não poderia ter criado um mundo melhor? Mas não sabemos a intenção de Deus, nem dos simuladores. Talvez estejam apenas fazendo uma experiência. Talvez tenham criado mil universos para ver o que acontecia.

Então vamos falar dos mundos reais que nós já conhecemos, pelo menos em parte. Ao que tudo indica, são as grandes empresas de tecnologia que vão estar no controle. Como confiar nas big techs para criar mundos virtuais justos e igualitários?
Bem, estamos falando do mesmo problema, na verdade. Quem são os criadores dos mundos virtuais? Nesse momento, os deuses do mundo virtual são essas corporações. E quais são as suas motivações? Financeiras, em última instância. Portanto, seus mundos não vão necessariamente atender aos melhores interesses dos usuários. Já vimos o que aconteceu com as redes sociais. Será que os mundos virtuais vão colocar em risco a nossa privacidade, a nossa autonomia? Será que seremos manipulados no futuro da mesma maneira que somos hoje pelas mídias sociais? Outro ponto-chave é o acesso a esses mundos. Será que as mesmas forças de desigualdade do mundo físico vão se manifestar nos mundos virtuais criados por essas corporações? Talvez usuários de elite possam pagar por mundos onde vivam de maneira autônoma, e aqueles sem recursos sejam obrigados a habitar realidades onde seus dados não são privados, e onde os fatos são manipulados.

Mesmo assim, você acha que vale a pena?
A internet é algo bom ou ruim? Muitas coisas têm sido maravilhosas. E outras têm sido horríveis. Gosto de pensar que o balanço é positivo. Espero que isso aconteça com os mundos virtuais. Mas temos, sim, que pensar muito nessas questões que estamos discutindo aqui. Há profundas discussões éticas, políticas e filosóficas sobre como esses mundos serão construídos. Como devemos organizar a sociedade? Quais são as melhores formas de governo para garantir justiça, liberdade e igualdade? Faço parte de alguns grupos que estão tentando criar esse tipo de diretriz para o metaverso. Mas, na verdade, não sei quanta influência esses grupos realmente têm. No final das contas, muita coisa vai ser decidida por corporações como Meta, Apple e Google. Vamos pelo menos torcer para que haja um pouco de reflexão sobre essas resoluções.

Seria interessante também que houvesse regras para esses novos mundos, certo?
Sim, precisamos de regras, especialmente agora, porque a tecnologia está evoluindo muito rápido e em breve chegaremos a algum tipo de inteligência artificial extremamente sofisticada. Seria fundamental termos algum tipo de regulação sobre a IA, antes que ela se torne totalmente dominante nas nossas vidas, e que suas falhas possam nos atingir gravemente.

Já que estamos falando de inteligência artificial, qual sua opinião sobre o episódio em que Blake Lemoine, ex-engenheiro do Google, disse que um sistema de IA conhecido como LamDA havia criado consciência?
Tenho pensado muito nesse assunto, porque a consciência tem sido meu tema principal de estudo por muitos anos. Embora ainda não exista uma teoria científica sobre isso, e não saibamos exatamente o que é consciência, tenho minhas opiniões, claro. Estou fortemente inclinado a acreditar que as máquinas podem, sim, ter consciência. Nós somos um tipo de máquina também. Somos máquinas biológicas. Nosso cérebro é uma espécie de computador biológico. E não acho que a biologia em si é a parte essencial. Por exemplo, se alguém fosse capaz de realizar os mesmos processos do cérebro, mas fosse feito de silicone, eu diria que ela tem consciência. Dez anos atrás, diria que nenhuma máquina estava próxima disso. Mas, agora, elas estão chegando mais perto. Esses modelos de linguagem são bem impressionantes. Troquei alguns e-mails com o engenheiro do Google sobre esses sistemas de IA.

E como foi essa conversa?
Para ele, é possível provar que esses novos sistemas são conscientes. Eu acho que eles têm algumas propriedades estranhas, porque não têm um pensamento unificado, apenas vão assimilando o que encontram. E são como camaleões, que podem imitar qualquer outro sistema. Mas não vi nada que mostre claramente que tenham consciência própria. Portanto, sou cético quanto a essas alegações. Mas não ficaria surpreso se, daqui a cinco anos, tivéssemos máquinas que interagissem conosco como se fossem seres humanos. Se elas não têm consciência agora, vão ter logo.

Como você é o especialista, acredito que vale a pergunta: o que significa exatamente ter consciência?
Para mim, consciência é uma experiência subjetiva. Nós experimentamos o mundo. Há alguma coisa específica em sermos quem somos. Temos o tempo todo experiências subjetivas, com o que vemos, o que ouvimos, o que sentimos. Essas são formas bem simples de consciência. Há formas mais avançadas, do tipo “Eu sei quem eu sou e o que estou fazendo”. Isso é o que eu chamaria de consciência de si mesmo, algo que é especialmente importante para nós. Um rato tem consciência, mas ele tem consciência de si mesmo? Eu não sei. E pode ser que alguns sistemas de IA já tenham consciência, da mesma maneira que um rato tem. Mas ter consciência de si mesmo é um salto bem maior para as máquinas. Acredito que isso ainda vá demorar alguns anos.

Muitas pessoas têm medo de que máquinas sencientes possam querer comandar o planeta, já que são superiores de várias maneiras.
Essa questão se aplica a qualquer inteligência artificial poderosa, mesmo que não seja senciente. No momento em que um sistema de IA mais inteligente que nós for capaz de realizar ações para alcançar um determinado objetivo, o perigo já estará instalado. Portanto, nós temos de ter certeza absoluta de que os objetivos do sistema de IA estão alinhados com os nossos objetivos como seres humanos, para que essa inteligência seja usada para tornar o mundo melhor, e não pior. Mas essa é uma questão bem complexa.

Talvez precisemos de algo como as três leis da Robótica, de Isaac Asimov.
Isso provavelmente não seria suficiente. Nem mesmo nos livros dava certo! O que nós precisamos é ter certeza de que as máquinas têm os mesmos valores e objetivos que os seres humanos. Mas é claro que nem mesmo os seres humanos conseguem concordar sobre como o mundo deveria ser. Não existe uma fórmula simples que possamos colocar em um sistema de IA e dizer: ‘OK, construa um mundo dessa forma. Os humanos têm brigado sobre isso por milênios’. Esse é um terreno em que temos que trabalhar muito. Os robôs superinteligentes, e com consciência, já estão chegando. Temos de estar prontos para eles.

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