“Neurodiversidade é dar voz e oportunidades para todos os grupos minoritários.” Essa é a definição de Igor Feracini, analista administrativo financeiro da fundação Specialisterne, diagnosticado com TEA (Transtorno do Espectro Autista). A organização sem fins lucrativos, nascida na Dinamarca e com presença no Brasil, é dedicada à inserção de pessoas autistas no mercado de trabalho por meio de programas de contratação e acompanhamento.
Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, uma a cada 44 crianças que nascem hoje no mundo recebe o diagnóstico de autismo. Mesmo assim, os índices de empregabilidade são baixos: apenas 15% das pessoas com TEA em idade adulta no Brasil estão empregadas. O país conta com uma lei de cotas para indivíduos com deficiência (de 2% a 5% dos contratados), mas o autismo só foi reconhecido como deficiência intelectual em 2010.
Em seu trabalho, Feracini tem a oportunidade de gerar uma corrente do bem e colaborar no processo de inclusão de pessoas autistas na sociedade. “Sou o responsável por assinar a carteira de trabalho dos funcionários, que muitas vezes são pessoas com mais de 40 anos que nunca tiveram um emprego”, diz ele – que, inclusive, descobriu a existência da Specialisterne por meio de uma reportagem de Época NEGÓCIOS.
A neurodiversidade vai além do Transtorno do Espectro Autista. Pessoas neuroatípicas também incluem aquelas com diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), dislexia (transtorno de aprendizagem que dificulta leitura e escrita), dispraxia (transtorno neurológico de coordenação motora que envolve dificuldade em pensar e realizar movimento planejado) ou outra deficiência intelectual.
A reportagem buscou empresas brasileiras que oferecem programas para neuroatípicos e encontrou uma concentração de pautas voltadas para o TEA e uma discussão embrionária direcionada ao TDAH.
Inclusão de pessoas com autismo
Os problemas enfrentados por cada indivíduo nunca são iguais. No caso de Feracini, suas barreiras são mais centradas no processo seletivo, por dificuldades de criar afinidade com desconhecidos e de manter contato visual. “Uma maneira eficiente de eliminar uma pessoa com autismo de um processo seletivo é uma dinâmica em grupo”, afirma. Ele sente ainda aversão a ambientes muito luminosos e barulhentos, o que pode ser resolvido com o uso de óculos escuros e protetores auriculares. “Se uma pessoa se sente confortável trabalhando dessa maneira, ninguém deve achá-la estranha por isso.”
Hoje em 23 países, a Specialisterne atua na preparação das equipes, para a conscientização e adaptação aos pequenos detalhes da rotina dos indivíduos, e faz a ponte entre pessoas com TEA e empresas que levantam a bandeira da neurodiversidade. Após a contratação, acompanha semanalmente, ao longo de um ano, os funcionários com mentores e suporte médico.
Desde a chegada ao Brasil, em 2017, cerca de 250 pessoas foram capacitadas e contratadas, por meio da metodologia importada da Dinamarca. O programa tem gerado uma retenção de 90% dos profissionais. Atualmente, a fundação conta com 23 empresas parceiras, incluindo Johnson & Johnson, SAP, Itaú, IBM, Braskem, BV, Goldman Sachs, JP Morgan, XP, Pactual e B3.
A maior parte das contratações ocorre no setor de tecnologia, mas não se restringe a ele – como no caso de Feracini. O motivo para esse recorte é o dia a dia do profissional de Tecnologia da Informação (TI), que costuma envolver mais tarefas repetitivas e exigir mais concentração.
“Pessoas com autismo normalmente têm hiperfoco e raciocínio lógico diferenciado, o que pode levar a entregas muito boas”, afirma Marcelo Vitoriano, presidente da Specialisterne no Brasil. “No entanto, não se deve criar a imagem de super-herói e esperar uma performance de 200%. O objetivo sempre deve ser 100%. Afinal, o maior benefício da neurodiversidade para a empresa é consolidar a cultura da diversidade, que já gera melhores entregas.”
“A neurodiversidade traz sensibilização, acolhimento e geração de empatia. Na prática, gera melhores produtos e concepções de serviços”, afirma Caio Bogos, CEO e fundador da startup aTip.
A aTip também vem ganhando visibilidade no setor de tecnologia. A startup trabalha com a inclusão de pessoas com TEA e realiza o evento Autismo Tech (hackathon para autistas), marcado para setembro deste ano, com patrocinadores como Rede Globo, Goldman Sachs e Microsoft.
Nesse processo de inclusão, o empresário reforça um ponto importante: a sensibilização. “Não basta só contratar pessoas. A empresa tem de estar disposta a adotar novos processos. Podem ser adaptações simples, como mudanças no fluxo de comunicação, ou mais complexas, como a adoção de uma forma de comunicação alternativa. Mas não se deve forçar um comportamento neurotípico.”
Entenda a seguir como Johnson & Johnson, SAP e Itaú estão realizando seus programas para pessoas neuroatípicas.
Johnson & Johnson
Na farmacêutica, o projeto de neurodiversidade nasceu no grupo internacional ADA, dedicado a discutir e propor ações para saúde mental dentro da companhia. Em 2018, uma funcionária norte-americana com autismo se voluntariou para iniciar o programa, que chegou em 2019 ao Brasil.
A empresa atua na educação e conscientização das equipes e organiza grupos de discussão entre pessoas com TEA e seus familiares, para integração e compartilhamento de obstáculos a serem superados. Hoje, tem 14 colaboradores com autismo em diversas áreas, como TI, marketing e vendas. O plano é expandir tanto as contratações de indivíduos com TEA quanto dos com TDAH.
“Temos visto um resultado acima do esperado, com contribuições pioneiras e fora da caixinha”, afirma Carla Silveira, líder do ADA e diretora de Qualidade Comercial para Américas da empresa. “Todos os gestores têm falado que contratar uma pessoa neuroatípica abriu seus olhos para um feedback mais imediato, instantâneo e uma escuta mais clara e ativa. Ou seja, a neurodiversidade traz, no mínimo, mais abertura e clareza.”
SAP
Em 2013, a companhia de software alemã criou nos países da Europa e nos Estados Unidos o programa SAP Autism at Work. No Brasil, ele começou a ser desenvolvido em 2015.
Hoje, a empresa tem 29 funcionários com TEA, entre contratados pelo projeto e funcionários que passaram a se autoidentificar como parte do grupo, e nos setores de tecnologia, vendas, consultoria de serviços e administração. “Com o programa, mais pessoas começaram a buscar o diagnóstico”, afirma Eliane Demitry, head do SAP Autism at Work no país.
“O gestor tem o compromisso de olhar para a diversidade. Tem de ter sensibilidade e abraçar o desafio”, afirma. De acordo com Eliane, o número de funcionários com TEA subiu 10% desde o ano passado. Até o fim de 2022, a empresa espera contratar mais duas pessoas.
Itaú
O banco tem uma técnica de contratação chamada emprego apoiado, que serve para reconhecer as características individuais da pessoa e sua rotina de trabalho, atuando também na inclusão de pessoas neuroatípicas desde antes da entrevista até depois da efetivação. A iniciativa começou a ser implementada em 2018.
O Itaú tem hoje 49 pessoas com TEA no quadro de funcionários. “Vale destacar o fenômeno da Primavera Autista, que se trata do diagnóstico tardio do transtorno”, diz Adriano Bandini, especialista em Diversidade do banco que acompanha a pauta dos neuroatípicos.
“Com a neurodiversidade, a humanização melhora, a comunicação melhora”, complementa. “Exige mais clareza, objetividade e avaliação de performance. É um desafio à melhoria de todos os membros da equipe.”
Por: MATTHEUS GOTO