A Lei Geral de Proteção de Dados acabou com a era do marketing digital?
Trabalhando com proteção de dados há cerca de quatro anos, já me deparei com duas situações interessantes e muito distintas nos departamentos ou empresas de marketing.
Na primeira situação, os profissionais de marketing rejeitam com veemência a LGPD, sob o argumento de que se trata de uma lei que surgiu para prejudicar suas atividades e até inviabilizar algumas práticas, e se opõem ao trabalho de adequação.
Por outro lado, vemos situações em que o próprio departamento de marketing, preocupado com a conformidade de suas atividades nas quais são utilizados muitos dados pessoais, acaba sendo o responsável por iniciar o processo de convencimento da empresa de que é necessário e urgente realizar a adequação àLei Geral de Proteção de Dados. Os responsáveis pelo marketing até mesmo tomam a iniciativa na busca por um advogado especializado para tratar do assunto, no intuito de reduzir suas inseguranças diante de uma lei que eles não conhecem bem e que muito impacta no seu trabalho.
É preciso desmistificar a ideia de que a LGPD traz prejuízos às atividades do marketing, diminuindo, assim, a rejeição à lei que muitos dos profissionais desse segmento demonstram.
A Lei Geral de Proteção de Dados não acabou com a era do marketing digital. Na verdade, analisando alguns pontos tanto da própria lei quanto do atual cenário do marketing digital, é possível chegar à conclusão de que a LGPD tem o potencial de otimizar o marketing e qualificar a base de leads.
Vale começarmos esse trabalho de desmistificação, esclarecendo para que serve a LGPD.
A Lei Geral de Proteção de Dados dispõe sobre como devem ser tratados os dados pessoais de toda pessoa natural (ou seja, pessoa física), estejam esses dados em papel ou em meio digital, e tem como objetivo proteger direitos que são considerados fundamentais, tais como a liberdade, a privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade.
Na sociedade em que vivemos hoje, na qual há grande circulação de dados, principalmente por meios digitais, existe um enorme potencial lesivo caso esses dados caiam em mãos erradas ou sejam tratados de forma inadequada. Esse potencial lesivo vai desde a chateação de receber ligações de telemarketing, mensagens de Whatsapp e e-mails de empresas com as quais não temos relacionamento e que estão tentando nos vender algo que não nos interessa, até o uso de nossos dados para fins criminosos ou discriminatórios.
Philip Kotler, uma grande referência no estudo do Marketing, ensina que o marketing é amplo, envolvendo a identificação e a satisfação das necessidades humanas e sociais.[1]
Se vivemos em um cenário de volume de circulação de dados e perigos advindos da atividade de tratamento desses dados, podemos afirmar que uma das maiores necessidades humanas e sociais da nossa era é a garantia do direito à privacidade e da proteção de dados, tal como consta no objetivo da LGPD.
A conclusão aqui, é a de que é impossível fazer um bom marketing sem considerar a privacidade e a proteção de dados dos leads e clientes como um elemento central.
Prosseguindo nos esclarecimentos, essencial dizermos que a LGPD não proíbe o tratamento de dados pessoais, o que significa que sim, é possível continuar coletando dados para campanhas, por exemplo, e desenvolvendo outras práticas do marketing digital.
Oque a lei faz é estabelecer critérios de como esse tratamento deve acontecer para que seja garantida a proteção dos donos desses dados, denominados pela lei de “titulares de dados”.
Nesse sentido, a LGPD traz um empoderamento muito grande para o cidadão, mostrando que cada um de nós somos os donos dos nossos dados, independentemente de quais empresas estejam realizando algum tratamento. Por isso a lei estabelece vários direitos para os titulares, que devem ser respeitados por toda e qualquer empresa que realize tratamento.
Analisando de perto, é possível enxergarmos uma perfeita convergência entre o atual momento vivido pelo mercado de marketing e a LGPD.
O marketing, inicialmente, era algo centrado no produto, tendo evoluído ao longo dos anos para um marketing centrado no consumidor, e, posteriormente, para o conceito de centralidade humana, no qual o foco do marketing sai do consumidor e do lucro e passa para a proposição de satisfação de questões humanas mais profundas, como as questões sociais e ambientais, além, é claro, de tudo isso ser feito com o uso cada vez mais intenso da tecnologia.
Podemos dizer, assim, que tanto o marketing quanto a LGPD estão na mesma página –pensar naquilo que é fundamental para o ser humano.
Feitos esses esclarecimentos iniciais, vamos à parte prática: um guia rápido de quais são os cuidados que eu preciso tomar para continuar desenvolvendo minhas atividades no marketing, prospectando e vendendo sem violar a Lei Geral deProteção de Dados.
Vale lembrar que esse guia não substitui a contratação de um profissional especializado em proteção de dados e que também entenda as atividades do marketing, afinal, para cada tipo de atividade desenvolvida podem existir inúmeras medidas que precisam ser tomadas a fim de estar em conformidade com alei, como veremos a seguir.
1. Captura de leads com uso de landing pages
Várias estratégias são usadas para captura de leads, como landing pages bem estruturadas e com campo de formulário no qual o usuário envia seus dados, seja porque se interessou pelo produto ou serviço ofertado, seja porque deseja ter acesso à isca digital oferecida.
O que é preciso observar nessa atividade?
O lead é titular de dados perante a LGPD, sendo necessário garantir o cumprimento de seus direitos previstos na lei, como o acesso facilitado às informações sobre o tratamento de seus dados, que deverão ser disponibilizadas de forma clara, adequada e ostensiva.
Um dos pontos mais importantes é dar transparência ao titular que insere seus dados no campo de formulário da página.
Transparência é um dos princípios das atividades de tratamento de dados previstos na lei, além de ser é a palavra chave para ações de marketing seguras do ponto de vista da LGPD e bem-sucedidas para a empresa. Ao titular, deve estar claro como a empresa usa os dados, quais são as medidas de segurança adotadas, qual é o canal de comunicação para falar a respeito do tratamento de dados pessoais.
Ao dar transparência dessas informações para o titular, não utilize termos genéricos, pois são considerados nulos pela legislação. Informe a finalidade do tratamento deixe todas essas informações claras o suficiente para que o titular não tenha a chance de se equivocar sobre o que vai acontecer com seus dados quando ele os inserir no campo de formulário.
É essencial, também, pensar na necessidade da coleta dos dados que estão sendo pedidos. Limite a coleta somente aos dados que sejam absolutamente necessários no momento e para a finalidade que você informou ao titular.
Busque se perguntar:
a) Para que eu preciso desse dado?
b) Ele será essencial para essa atividade?
c) É possível executar a mesma finalidade sem coletar esse dado?
Após essas reflexões, faça a análise do formulário da sua landing page e, se necessário, proceda alguns ajustes.
2. E-mail marketing
Oe-mail marketing é, geralmente, uma boa forma de se relacionar com os clientes e potenciais clientes. Por mais que alguns especialistas sustentem que o e-mail marketing morreu, ele ainda pode ser uma ferramenta muito eficaz quando usado de forma estratégica.
E essa forma estratégica inclui medidas que vão ao encontro do conteúdo da LeiGeral de Proteção de Dados.
A base de dados usada para e-mail marketing precisa ser legalizada, ou seja, para cada dado que você está tratando, é preciso determinar qual é a base legal, excluindo-se dados desnecessários ou que não podem ser justificados nas hipóteses de tratamento previstas na lei.
Ações como a compra de base de e-mails, que já não eram bem vistas pelo público e pelas empresas que tinham um marketing mais estratégico, com a LGPD, serão praticamente abolidas.
Pessoas que estão na sua base de e-mails, mas não engajam com seu conteúdo, provavelmente estão representando somente custos para você. Pode ser muito mais interessante, não só do ponto de vista da LGPD, como também para obtenção de resultados com o e-mail marketing, promover uma limpeza dessa base.
As bases legais adotadas no marketing serão basicamente o consentimento e o legítimo interesse, sendo que a escolha de qual delas adotar deverá ser feita de forma estratégica caso a caso.
Por um lado, utilizar sempre o consentimento e ter uma base de dados reduzida pode ser mais interessante do ponto de vista de resultados, pois os leads dessa base, uma vez que consentiram no tratamento, confiam mais na empresa e possivelmente os e-mails terão taxa de abertura maior.
Por outro lado, a gestão do consentimento pode se tornar uma tarefa difícil sem uma boa ferramenta ou um banco de dados unificado.
Importante lembrar, ainda, que em ambas as hipóteses (consentimento ou legítimo interesse), é necessário atender a todas as especificidades tratadas na lei.Ex: o uso do legítimo interesse demanda finalidades legítimas; já o consentimento precisa ser dado de forma livre, inequívoca e informada e deve ser concedido um consentimento pra cada finalidade.
É válido lembrar que o consentimento para o tratamento de dados pessoais pode ser retirado pelo titular a qualquer momento e você não poderá continuar realizando o tratamento. É importante que seja inserida, por exemplo, a opção de opt-out da lista de e-mails.
3. CRM e exclusão de dados
É comum o uso de software de CRM para gerenciar o relacionamento com os clientes desde o momento em que entram no funil da empresa até, pelo menos, o momento da compra.
Acontece que, muitas vezes, os dados de um lead ficam armazenados no CRM da empresa por período indeterminado, mesmo após o encerramento das negociações e perda da oportunidade.
É preciso, novamente, que seja feita uma limpeza dos dados, uma vez que, quando se dá a perda da oportunidade, a finalidade do tratamento já foi exaurida.
4. Marketing outbound
No caso do marketing outbound, que muitas vezes trabalha com processos de abordagem em massa como cold calls, ligações robóticas, disparo de grande quantidade de e-mails, no geral, já existe um entendimento corrente no próprio mercado do marketing de que tais práticas não entregam mais os mesmos resultados.
O lead tem o direito de exigir a informação de como o contato dele foi obtido.
A forma de abordar o lead já estava sendo revista pelo mercado antes mesmo da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados. Chegou o momento de intensificar essa revisão com o auxílio de um especialista em proteção de dados.
Conclusão
Percebemos que as exigências trazidas pela LGPD não prejudicam os resultados de quem depende do marketing para realizar vendas, auxiliando, na verdade, a qualificar os leads e obter melhores resultados.
A adoção desses cuidados sugeridos e a extensão das medidas vai depender, logicamente, do caso concreto. É preciso esclarecer, no entanto, que a não adoção das medidas pertinentes pode acarretar prejuízos de diversas ordens, como as sanções trazidas na própria lei.
Além disso, para aquelas empresas que prestam serviços de marketing digital, será cada vez mais difícil conseguir fechar novos contratos, pois ninguém vai querer contratar uma empresa que não está adequada.
A proteção de dados no contexto de marketing é uma oportunidade para que a empresa possa repensar suas estratégias e fazer um marketing mais adequado aos dias atuais e com mais resultados.
[1] Administração de Marketing: A Bíblia do Marketing, 2006.
Por: Camilla Pinheiro