Startups do Nordeste tentam driblar distância e baixo investimento para despontarem

Impulsionadas pela digitalização, região registrou recorde de cheques no ano passado; reuniões no Zoom substituem encontros em São Paulo

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Ronaldo Tenório, Thadeu Luz, e Carlos Wanderlan, cofundadores da Hand Talk; startup alagoana tenta furar a bolha e ter alcance nacional Foto: Divulgação / Estadão

Atualmente, o Brasil tem 23 “unicórnios” (startups avaliadas acima de US$ 1 bilhão) – todos são do eixo Sul-Sudeste. Isso, porém, não significa que o ecossistema nacional de inovação exista apenas nessas regiões. Empreendedores de estados como Alagoas, Bahia e Ceará tentam encontrar o próprio caminho sem precisar mudar de endereço. Com os encontros na avenida Faria Lima, em São Paulo, substituídos por chamadas no Zoom, o mercado nacional de tecnologia está ficando mais diverso.

Fundada em 2012, a Hand Talk foi uma das pioneiras a desbravar o setor de tecnologia em Alagoas, berço do polo de inovação conhecido como “Sururu Valley”. Desde então, a plataforma de tradução de conteúdos do português para a língua brasileira de sinais avançou pelo País. Atualmente apenas 5% dos clientes e 30% dos funcionários da startup vivem no Estado, destaca Ronaldo Tenório, cofundador da startup.

Para ele, o impulsionamento da digitalização na pandemia foi essencial para ajudar startups nordestinas a atrair talentos e investimentos. “Agora, sinto menos a barreira física. A distância deixou de ser um bicho de sete cabeças”, comenta o executivo. Hoje, a plataforma soma 250 mil usuários mensais no seu app.

O diretor financeiro da aceleradora Liga Ventures, Daniel Grossi, narra um cenário parecido. “Antes da pandemia, os tomadores de decisão queriam estar cara a cara com os fundadores das startups. Agora,o processo é muito mais flexível”, relata ao falar tanto sobre as etapas iniciais de seleção das startups para programas de aceleração quanto às interações após fechamentos de negócios.

A Trakto, conterrânea da Hand Talk, também é referência no mercado alagoano. Em 2015, a plataforma de design que compete com o Canvas recebeu seu primeiro cheque: R$ 300 mil divididos em 10 parcelas. Seis anos depois, captou R$ 7 milhões, maior investimento já recebido por uma startup de Maceió. Agora, a meta é ser a primeira da cidade a levantar uma rodada Série A. “Falaram que não conseguiria empreender daqui. Pago um preço alto, mas colho bons frutos e provo que é possível inovar de qualquer lugar”, conta Paulo Tenório, CEO da companhia.

A baiana Sanar, plataforma de educação assinada por um terço dos estudantes de medicina do Brasil, é mais uma a enxergar a localização como um diferencial competitivo. “Estar fora da bolha acabou se mostrando uma vantagem, porque não entramos no mercado com uma visão viciada”, afirma o CEO e fundador, Ubiraci Mercês.”Permitiu ainda que fossemos berço de talentos locais”, complementa.

A disposição de investidores de “furar” essa bolha, somada à quebra das barreiras geográficas, tornam a descentralização do mercado de inovação um processo natural, avalia o membro do conselho da Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs) e advogado especialista em tecnologia, João Amaral. “É essencial o interesse de sair um pouco da batalha sangrenta do eixo Sul-Sudeste e buscar oportunidades em outros estados”, defende. Com isso, fundos dedicados a olhar além da Faria Lima começam a surgir, como o Cloud9, que tem ex-membros do SoftBank entre seus fundadores.

Desafios

Dessa maneira, as captações de startups nordestinas acompanharam o boom nacional.Os investimentos saltaram 389% no ano passado ante 2020, passando de menos de US$ 18 milhões para US$ 87 milhões, segundo a plataforma de inteligência de dados Sling Hub. Claro, o número é muito menor que o levantado por startups do Sudeste, que levantaram US$ 8,7 bilhões em 2021.

Porém, parte dessa diferença pode ser explicada pelo fato de que existem menos startups no Nordeste. Quase 80% das empresas de tecnologia mapeadas pela Sling Hub estão no Sudeste e no Sul do País, com 58% e 20% de participação, respectivamente. O Nordeste aparece em terceiro lugar, abrigando apenas 7%.

O gestor de portfólio da Vox Capital, Rafael Campos, reconhece que o número de startups nordestinas escolhidas pelos fundos ainda é ainda pequeno em relação ao total. No entanto, acredita que isso pode estar mudando. “As empresas da região têm chegado mais maduras para falar com a gente. Vejo uma evolução nesse ecossistema. É normal ele ser menor, por ser mais recente, mas deve ganhar volume nos próximos anos”, afirma o representante do fundo que tem a Sanar como uma das investidas.

Outro desafio é convencer potenciais clientes da qualidade dos serviços “Nos esforçamos para driblar o ‘conservadorismo’. Os clientes ainda ficam céticos sem a chancela de um grande banco e têm dificuldade em confiar em tecnologias”, observa Allan Victor, diretor de marketing da Mittu, fintech cearense. Atualmente, 13 mil pessoas são remuneradas por meio da plataforma que automatiza o pagamento da folha, movimentando cerca de R$ 170 milhões por ano.

Paulo Fontes, CEO da Konsi, startup baiana que atua no mercado de crédito consignado, diz que o cenário melhorou, mas acredita que a balança continua a pesar contra as startups do Nordeste. “Apesar dos avanços, sinto que ainda existe um privilégio para startups do eixo”, pondera. Depois de saltar de 500 usuários para 7 mil em dois meses, a meta da empresa, que chegou recentemente em São Paulo, é desembarcar em mais sete estados até o fim de 2022.

Dentro da própria região, há diferenças importantes. Pernambuco, por exemplo, conta com o Porto Digital, local de referência para esse mercado no Nordeste. Por lá, estão embarcadas 355 empresas de tecnologia que somaram faturamento próximo de R$ 4 bilhões em 2021, aumento anual de 28%. Por outro lado, Estados como o Piauí têm mercados em embrionários.

Lucas Cruz, fundador e CEO da Cruze, que atua no mercado de energia solar, relata um cenário mais difícil no Piauí. Para ele, encontrar mão de obra capacitada é o principal desafio. “Eu me sinto um peixe fora d’água aqui. Não temos muitas startups”, afirma. “Mas a digitalização tem nos ajudado a driblar o regionalismo”, complementa.

Por: Elisa Calmon

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